comédia

A reprodução imitadora (μίμησις [mimesis]) da comédia como distorção do sentido da forma (λύπη [lype]) deprimente do pudor (αἰδώς [aidos])

O mesmo sucede com aquilo que é ridículo [Rep., 606c2 e 606c5; Filebo, 47b; v. riso]. «Ao ouvir qualquer coisa ridícula numa reprodução cómica ou numa conversa particular, acha-se graça a isso e não a achamos detestável como se fosse ruim — mas se a nós próprios nos acontecesse ficaríamos envergonhados e embaraçados» [Rep., 606c. Cf. Jowett and Campbell: «It is possible however that we have here a carelessly written sentence» (pp. 456-457, ad locum).]. A afetação com que acolhemos uma situação humana representada pela comédia é jocosa, provoca o riso, é uma forma de prazer (ἡδύ [hedu], ἡδονή [hedone]), mas se alguém passasse por essa situação, experimentá-la-ia necessariamente como de mau gosto, maldosa e causando embaraço e vergonha. Esta forma de distorção cômica acontece relativamente a todo um conjunto de afetações que acontecem nas mais diversas situações por que passamos, «acerca da sexualidade e da irascibilidade, bem como acerca do todos os desejos e de todos os sofrimentos e prazeres que nos sucedem na alma e que nós dizemos acompanhar toda a situação por que passamos ou ação que levamos a cabo» [Rep., 606d].

A possibilidade de transformar uma situação embaraçosa, enquanto forma de sofrimento (λύπη), numa dimensão cômica resulta da ambiguidade do horizonte da práxis (πρᾶξις [praxis]). A comédia considera a depressão (λύπη), que se constitui em situações penosas [Rep., 606c4], como se elas não nos acontecessem a nós [Não se detesta as situações que são pessoas. Antes, aquele que as ouve, goza intensamente (Rep., 606c4) com elas.].

O modo de distorção do sentido da situação (πρᾶξις) humana que tem lugar na comédia é o mesmo presente na tragédia. Contudo, enquanto a segunda tem o seu interesse em situações que inspiram a nossa piedade e compaixão [Rep., 606c5] a comédia «dá largas» [Rep., 606c7] àquilo que [92] habitualmente se reprime «em si mesmo» [Rep., 606c6] numa situação privada através da ação levada a cabo pelo sentido (λόγος). Ao ter em vista o verdadeiro sentido por trás de cada situação cômica, o sentido compressivo (λόγος [logos]) reprime a mera reação patológica do gozo. Uma vez mais o problema está em saber o que é que distorce a situação tematizada pela comédia e que faz dela uma situação que provoca o riso. O que é que transforma os diversos acontecimentos da vida humana (ψυχή [psyche]) e da sua situação (πρᾶξις), levando-os a tornarem-se «cômicos» ou, vice-versa, a tornarem-se penosos? [CaeiroArete:92-93]