O Estado, esta obra-prima do egoísmo racional óbvio, do egoísmo de todos somado, deu, para a proteção do direito de todos, uma força que ultrapassa infinitamente a potência de cada um e que o força a respeitar o direito de todos os outros. Por isso, o egoísmo ilimitado de quase todos, a maldade de muitos e a crueldade de alguns não podem sobressair; a coerção subjugou a todos. A ilusão que daí surge é tão grande que, quando nós vemos aparecer, em casos isolados, em que a potência do Estado não pode proteger ou é enganada, a cobiça insaciável, a ganância ignóbil, a falsidade profundamente escondida, a maldade pérfida do ser humano, muitas vezes recuamos horrorizados e levantamos um clamor de justiça, pensando que um monstro nunca visto veio ao nosso encontro. Mas sem a coerção da lei e a necessidade da honra civil tais ocorrências estariam na ordem do dia. É preciso ler histórias criminais e descrições de situações anárquicas para saber o que é propriamente o ser humano no aspecto moral. É preciso ver os milhares que se acotovelam uns aos outros num transitar pacífico, diante de nossos olhos, como se fossem tigres e lobos cujas mandíbulas estivessem seguras por forte focinheira. Por isso, quando se pensa a violência estatal como suprimida, quer dizer, a focinheira como tendo sido retirada, toda pessoa inteligente recua diante do espetáculo que é de esperar, pelo que dá a entender quão pouco efeito atribui, no fundo, à religião, à consciência ou ao fundamento natural da moral [118], seja qual for. Mas justo então as motivações morais verdadeiras exibem abertamente sua efetividade contra aquelas potências imorais liberadas, podendo assim ser reconhecidas do modo mais fácil. Aí aparece desvelada a incrivelmente grande diferença dos caracteres, que se mostrará como sendo tão grande quanto a diferença intelectual das cabeças, com o que já se disse muito. [Schopenhauer, SFM:118-119]