Céu Terra

A separação do Céu e da Terra é mito de indiscutível universalidade. Aqui, só queremos que se atente na «separação». A linguagem mítica não pode exceder-se. Resta-nos questionar o próprio mito, o mesmo que ele próprio diz, averiguar o de que nos fala. Tem de dizer-nos alguma coisa, temos de fazer que ele no-la diga. Em primeiro e mais excelente lugar, encontra-se que ele fala do que é, do que há, do que existe, antes de mundo ser, haver, existir. Mundo é, há e existe, como Céu e Terra, como Céu sobre a Terra, como Céu distante da Terra, como Céu que às vezes à Terra se une, por exemplo, em forma das águas fecundantes da chuva. Céu e Terra são os dois grandes componentes cósmicos. Céu e Terra perfazem mundo, ou espaço e tempo para [69] mundo. Mundo não há, antes da separação. Enquanto nos fala da separação, o mito alude, se não chega a dizê-lo, ao que está antes do mundo. A linguagem do mito é ingênua, em todos os sentidos da palavra. Ingênuo, num só dos sentidos, é o desentender essa linguagem. O mito não pode dizer senão que Céu e Terra estavam juntos, antes de se separarem. Como o mito não se reflete em si próprio, façamos que ele se reflita em nós. Que podemos nós pensar desse antes que mundo houvesse supondo apenas que Céu e Terra estavam juntos? Atendamos, pois, ao que o mito nos diz, pois o que ele diz a outros só a outros interessa. No domínio do mítico dá-se o milagre de cada um escutar em seu idioma o mito relatado em linguagem que não é a de quem o escuta. Que escutamos nós quando ouvimos que antes, Céu e Terra estavam juntos? Por mim, o que ouço é dizer que eles estavam conjuntos, de tal maneira conjuntos, que não se distinguia, na conjunção, o onde acaba a Terra e o Céu começa. Talvez, por isso, o poeta da Teogonia pôs a Noite junto do Caos. Quem verá na obscuridade de uma noite em que as nuvens absorvem a luz das estrelas o onde o Céu começa e a Terra acaba? No «antes de mundo» está o que não é Céu nem Terra, mas só indistinção e indiferença. De Deus, a figura sem figura que aos primeiros filósofos se afigura é o Indiferenciado, para além do horizonte, aquém do qual o mundo existe como Céu e Terra separados, na relativa separação que não os impede de se reunirem em mundo. [EudoroMito:69-70]