Não é significativo constatar que todos os caracteres negativos de que se reveste o corpo humano em sua entrega ao mundo, em seu abandono, em sua ausência de justificação, em sua estranheza, em sua contingência, em seu absurdo, eventualmente em sua feiura ou em sua vulgaridade, desaparecem quando, vivido do interior, esse corpo se revela a si mesmo como carne vivente? Pois, se é possível perguntar por que o ser que somos tem dois olhos em vez de três (ou, como os ciclopes, um só no meio da testa), por que tem quatro membros — dois superiores e dois inferiores — em vez de mil patas como o herói de Kafka em sua metamorfose, ou dez mil mãos como a deusa Kannon, ninguém, contudo, verdadeiramente se lamenta de ver, ouvir ou caminhar. Se no mundo tudo parece arbitrário, o mesmo já não se dá ali onde elas se revelam a si mesmas e se cumprem, prestações transcendentais de nossos sentidos ou dos outros poderes originários de nossa carne. Muito pelo contrário: é sua ausência ou sua alteração que se descobre insuportável, como na doença ou na enfermidade. (Michel Henry, MHE)