A fé pode ser entendida como virtude e como ato. Prescindimos neste estudo da fé como virtude, para nos limitar exclusivamente ao “ato de fé”. Pois bem; o ato de fé é um ato complexo; quer dizer que consta de vários elementos. A análise pode decompô-lo e fazer-nos descobrir que o ato de fé é composto de elementos psíquicos, de elementos lógicos e de objetos reais. Por conseguinte, o ato de fé interessará, por sua complicada estrutura, a três ciências filosóficas: á psicologia, à lógica e à ontologia (teoria dos objetivos reais). Mas, de outra parte, os objetos que no ato de fé propriamente dito apreendemos são objetos muito particulares; pertencem a uma especial modalidade da realidade, que pode ser chamada a realidade sobrenatural ou realidade divina. Deste lado, pois, o ato de fé interessa também à ciência da realidade sobrenatural ou divina, cujo nome é teologia. São, pois quatro facetas que o ato de fé apresenta, dando frente para quatro ciências distintas: a psicologia, a lógica, a ontologia e a teologia. Na unidade de sua essência, o ato de fé apresenta, pois, problemas em grande número de direções diversas. Pode estudá-lo o teólogo; e estuda-o de fato como fundamento primordial da disciplina teológica, a qual é ciência, justa e precisamente porque o ato de fé é ato de conhecimento objetivo. Pode também estudá-lo o psicólogo como ato subjetivo da alma; e indagar se é ato de toda a alma ou de uma ou de várias faculdades da alma e se é ato de todas as almas ou de algumas tão-somente e de quais. Pode estudá-lo, outrossim, o lógico para procurar o fundamento de validez que se deve conceder às afirmações da fé. Por último, pode considerá-lo o metafísico ou o ontólogo quanto à índole da realidade ou objetividade sobre que incide. No estudo completo do ato de fé, teriam, pois, de colaborar amistosamente essas quatro ciências: a psicologia, a lógica, a ontologia e a teologia. As três primeiras pertencem ao conjunto de disciplinas que geralmente se chamam filosofia. O ato de fé oferece-nos, pois, um tema, no qual se verifica, de modo exemplar, a antiga concepção da filosofia como ciência auxiliar ou propedêutica da teologia. Sem tantos eufemismos, diziam singelamente os antigos que a filosofia era a serva ou criada da teologia, ancilla theologiae. Mas, de uns três séculos para cá, a filosofia chamada moderna emancipou-se, por assim dizer e já não quer servir à ciência de Deus. Rebelou-se até mesmo contra a ciência de Deus e ataca-a na sua própria base, negando-lhe seu objeto, pondo em interdição sua possibilidade e realidade objetivas. Por que a filosofia “moderna” julga inválido o conhecimento de Deus? Por que nega a validez objetiva do ato de fé? Qual é o germe primordial dessa sua atitude negativa? Preparar a resposta a essas perguntas é o objeto primordial da presente lição.
No ato de fé devemos distinguir antes de tudo o ato de uma parte e o objeto de outra. Como fenômeno psíquico, o ato de fé é intencional; quer dizer, refere-se a um objeto, recai sobre um objeto. Foi talvez a principal contribuição de Brentano à filosofia atual esta caracterização do fenômeno psíquico como intencional; quer dizer, como ato subjetivo referido a um objeto ou que recai sobre um objeto. Uma coisa é o pensamento e outra o pensado pelo pensamento; uma coisa é volição e outra o desejado pela volição. Todo pensamento é pensamento de algo; toda sensação é sensação de algo; todo desejo, toda aspiração, toda volição são desejos de algo, aspiração de algo, volição de algo. E este algo pensado, sentido ou pretendido, não pode ser confundido ou identificado com o ato subjetivo do pensá-lo, senti-lo, querê-lo. Esse algo é o objeto intencional do fenômeno psíquico ou, melhor dito, do ato. Com esta singela averiguação, já por si evidente, fica eliminado, a mil léguas do horizonte intelectual, esse vago e desconsertante “subjetivismo” que amorosamente cultivaram, como ninho de benquistas confusões, muitos filósofos modernos.
O ato e o objeto encontram-se, pois, um diante do outro. O ato de fé recai sobre o objeto, e o recair sobre o objeto é para ele essencial. Se não há objeto sobre o qual incida o ato, não há também ato de fé. Podem ser, pois, duas as causas que anulem ou aniquilem o ato de fé: ou que o ato fique sem objeto, ou que o objeto fique sem ato. Dito de outro modo: ou que queira o homem verificar o ato de fé, mas não encontra objeto sobre o qual possa fazê-lo recair, ou que havendo objeto sobre o qual possa o ato recair, não queira o homem verificar o ato de fé. Assim, por exemplo: se ante um juiz se apresenta para depor uma testemunha, na qual, por qualquer razão, está disposto a crer o juiz, e esta testemunha não declara nada concreto, o juiz não pode verificar ato de fé porque não há matéria sobre a qual recaia este ato. Inversamente, se ante o juiz se apresenta uma declaração terminante e concreta prestada por uma testemunha, na qual o juiz, por qualquer motivo, não está disposto a crer, então o juiz não verifica o ato de fé, embora exista objeto sobre o qual pudesse recair este ato.
Exige-se, pois, para que haja ato de fé a confluência do ato e do objeto. O ato, coloca-o o sujeito pensante. Em troca, o objeto encontra o sujeito diante de si — não o põe por si mesmo; pois se o pusesse por si mesmo não seria já o objeto, mas uma posição do sujeito, pertencente ao ato, não ao objeto do ato. Mas uma vez que confluem num mesmo ponto o ato do sujeito e a realidade do objeto; procedendo cada um de origem oposta, como se abraçam e juntam para constituir o ato de fé?
Em primeiro lugar, abraçam-se e juntam-se desta maneira: que o ato consiste em assentir ao objeto. Assentir ao objeto é dizer sim ao objeto, afirmar o conteúdo do objeto. Mas isto não distinguiria o ato de fé de qualquer outro juízo, porque em todo juízo encontramos sempre um ato de assentimento a um conteúdo ideal proposto. Que diferença há, pois, entre o ato de assentir ao objeto quando é juízo e quando é ato de fé? Há a seguinte diferença: que no assentimento do juízo a seu objeto, a causa do assentimento se acha no caráter de “evidente” que tem o objeto: enquanto que no ato de fé assentimos a um objeto que não tem esse caráter de evidência. Por exemplo, no juízo: dois e dois são quatro, o ato do juízo consiste no afirmá-lo: e o objeto do juízo consiste em “dois e dois são quatro”. Mas se eu afirmo, quer dizer, se verifico o ato, é porque o objeto: dois e dois são quatro, é evidente. Ao contrário, no ato de fé, o objeto não é evidente. Assim, por exemplo, se verifico o ato de fé consistente em acreditar que Deus é uno em essência e trino em pessoas, afirmo, ou seja, verifico o ato; porém a afirmação recai sobre um objeto — trindade, unidade — que não é evidente. Mas logo perguntaremos: que é a evidência? [Morente]
Schumacher: A GUIDE FOR THE PERPLEXED
Quando lidando com algo representando um grau de significância ou Nível de Ser mais elevado que a matéria inanimada, o observador depende não somente da adequação de suas próprias qualidades superiores, talvez «desenvolvidas» através do ensino e do aprendizado; depende também da adequação de sua «fé» ou colocando mais convencionalmente, de suas pressuposições fundamentais e suposições básicas. Neste respeito tende a ser um filho de seu tempo e da civilização na qual passou seus anos de formação; pois a mente humana, geralmente, não apenas pensa: pensa com ideias, a maioria das quais simplesmente adota e toma da sociedade que a cerca.
Nada há mais difícil do que se tornar criticamente ciente das pressuposições de seu pensamento. Tudo pode ser visto diretamente exceto o olho através do qual vemos. Todo pensamento pode ser escrutinado diretamente exceto o pensamento pelo qual escrutinamos. Um esforço especial, um esforço de auto–ciência, é necessário: essa façanha quase impossível do pensamento recolhendo-se sobre si mesmo — quase impossível mas não tanto. De fato, este é o poder que faz o homem humano e também capaz de transcender sua humanidade. Jaz no que a Bíblia denomina as «partes interiores» do homem. Onde «interior» corresponde a «superior» e «exterior» corresponde a «inferior». Os sentidos são os instrumentos mais exteriores; quando é o caso, «eles, vendo, não veem; e ouvindo, não ouvem», a falha não se encontra nos sentidos mas nas partes interiores — «pois o coração das pessoas está encoberto»; falham em «compreender com seu coração». Somente através do «coração» pode contato ser feito com os graus de significância e Níveis de Ser.
A fé não está em conflito com a razão, nem é um substituto para a razão. A fé escolhe o grau de significância ou Nível de Ser que a busca por conhecimento e compreensão deve ter como meta. Há uma fé racional e há uma fé irracional. Buscar sentido e propósito ao nível da matéria inanimada seria um ato de fé tão irracional como uma tentativa de «explicar» as obras magnas do gênio humano como nada mais que o resultado de interesses econômicos ou frustrações sexuais. A fé do agnóstico é talvez a mais irracional de todas, porque, a menos que seja mera camuflagem, é uma decisão por tratar a questão da significância como insignificante, como dizendo: «Não quero decidir se um livro é meramente uma forma colorida, uma série de marcas sobre papel, uma série de letras ordenadas de acordo com certas regras, ou uma expressão de significado». Não é de surpreender, que a sabedoria tradicional sempre tratou o agnóstico com desprezo.
Dificilmente pode ser tomado como um ato de fé irracional aceitar o testemunho de profetas, sábios e santos que, em diferentes linguagens mas com virtualmente uma voz, declaram que o livro deste mundo não é meramente uma forma colorida mas uma expressão de significado; que há Níveis de Ser acima da humanidade; e que o homem pode alcançar estes níveis mais elevados desde que permita a sua razão ser guiada pela fé. Ninguém mais claramente descreveu a possível jornada do homem para a verdade do que Agostinho de Hipona:
O primeiro passo adiante… será ver que a atenção é atada à verdade. Certamente a fé não vê a verdade claramente, mas tem um olho para ela, assim por dizer, que a capacita a ver que uma coisa é verdadeira mesmo quando não vê a razão para tal. Não vê ainda a coisa que crê, mas pelo menos conhece por certo que não a vê e que é verdade apesar de tudo. Esta posse através da fé de uma verdade oculta porém certa é a própria coisa que impele a mente a penetrar seu conteúdo, e dar a fórmula, «Crede para poder compreender» (Crede ut intelligas), seu pleno significado. (apud Etienne Gilson)
Com a luz do intelecto podemos ver coisas que são invisíveis a nossos sentidos corporais. Ninguém nega que verdades geométricas e matemáticas são «vistas» desta maneira. Provar uma proposição significa dar a ela uma forma, pela análise, simplificação, transformação, ou dissecação, através da qual a verdade pode ser vista; além deste ver não há nem possibilidade nem necessidade de qualquer outra prova.
Podemos ver com a luz do intelecto coisas que estão além da matemática e da geometria? De novo, ninguém nega que podemos ver o que outra pessoa significa, algumas vezes mesmo quando não se expressa acuradamente. Nossa linguagem do dia a dia é uma testemunha constante deste poder de ver, de apreender ideias, que é bastante diferente dos processos de pensar e formar opiniões. Produz instantâneos de compreensão:
Até onde Agostinho se refere, a fé é o coração da questão. A fé nos diz o que há para compreender; purifica o coração, e assim permite a razão beneficiar da discussão; capacita a razão para alcançar uma compreensão da revelação de Deus. Em resumo, quando Agostinho fala de compreensão, tem sempre em mente o produto de uma atividade racional para a qual a fé prepara o caminho. (Etienne GIlson)
Como os budistas dizem, a fé abre o «olho da verdade», também chamado o «Olho do Coração» ou o «Olho da Alma». Agostinho insistia que «todo nosso afazer nesta vida é restaurar a saúde do olho do coração através do qual Deus pode ser visto». O grande sufi persa Rumi diz do «olho do coração, que é setenta vezes e do qual estes dois olhos sensíveis são apenas os coletores»; enquanto John Smith o Platonista aconselha: «Devemos fechar os olhos dos sentidos, e abrir este brilhante olho de nossa compreensão, esse outro olho da alma, como o filósofo chama nossa faculdade intelectual, que de fato todos têm, mas poucos usam». O teólogo escocês Ricardo de São-Victor diz: Pois o sentido exterior apenas percebe coisas visíveis e só o olho do coração vê o invisível».
Schumacher: A GUIDE FOR THE PERPLEXED
Quando lidando com algo representando um grau de significância ou Nível de Ser mais elevado que a matéria inanimada, o observador depende não somente da adequação de suas próprias qualidades superiores, talvez «desenvolvidas» através do ensino e do aprendizado; depende também da adequação de sua «fé» ou colocando mais convencionalmente, de suas pressuposições fundamentais e suposições básicas. Neste respeito tende a ser um filho de seu tempo e da civilização na qual passou seus anos de formação; pois a mente humana, geralmente, não apenas pensa: pensa com ideias, a maioria das quais simplesmente adota e toma da sociedade que a cerca.
Nada há mais difícil do que se tornar criticamente ciente das pressuposições de seu pensamento. Tudo pode ser visto diretamente exceto o olho através do qual vemos. Todo pensamento pode ser escrutinado diretamente exceto o pensamento pelo qual escrutinamos. Um esforço especial, um esforço de auto–ciência, é necessário: essa façanha quase impossível do pensamento recolhendo-se sobre si mesmo — quase impossível mas não tanto. De fato, este é o poder que faz o homem humano e também capaz de transcender sua humanidade. Jaz no que a Bíblia denomina as «partes interiores» do homem. Onde «interior» corresponde a «superior» e «exterior» corresponde a «inferior». Os sentidos são os instrumentos mais exteriores; quando é o caso, «eles, vendo, não veem; e ouvindo, não ouvem», a falha não se encontra nos sentidos mas nas partes interiores — «pois o coração das pessoas está encoberto»; falham em «compreender com seu coração». Somente através do «coração» pode contato ser feito com os graus de significância e Níveis de Ser.
A fé não está em conflito com a razão, nem é um substituto para a razão. A fé escolhe o grau de significância ou Nível de Ser que a busca por conhecimento e compreensão deve ter como meta. Há uma fé racional e há uma fé irracional. Buscar sentido e propósito ao nível da matéria inanimada seria um ato de fé tão irracional como uma tentativa de «explicar» as obras magnas do gênio humano como nada mais que o resultado de interesses econômicos ou frustrações sexuais. A fé do agnóstico é talvez a mais irracional de todas, porque, a menos que seja mera camuflagem, é uma decisão por tratar a questão da significância como insignificante, como dizendo: «Não quero decidir se um livro é meramente uma forma colorida, uma série de marcas sobre papel, uma série de letras ordenadas de acordo com certas regras, ou uma expressão de significado». Não é de surpreender, que a sabedoria tradicional sempre tratou o agnóstico com desprezo.
Dificilmente pode ser tomado como um ato de fé irracional aceitar o testemunho de profetas, sábios e santos que, em diferentes linguagens mas com virtualmente uma voz, declaram que o livro deste mundo não é meramente uma forma colorida mas uma expressão de significado; que há Níveis de Ser acima da humanidade; e que o homem pode alcançar estes níveis mais elevados desde que permita a sua razão ser guiada pela fé. Ninguém mais claramente descreveu a possível jornada do homem para a verdade do que Agostinho de Hipona:
O primeiro passo adiante… será ver que a atenção é atada à verdade. Certamente a fé não vê a verdade claramente, mas tem um olho para ela, assim por dizer, que a capacita a ver que uma coisa é verdadeira mesmo quando não vê a razão para tal. Não vê ainda a coisa que crê, mas pelo menos conhece por certo que não a vê e que é verdade apesar de tudo. Esta posse através da fé de uma verdade oculta porém certa é a própria coisa que impele a mente a penetrar seu conteúdo, e dar a fórmula, «Crede para poder compreender» (Crede ut intelligas), seu pleno significado. (apud Etienne Gilson)
Com a luz do intelecto podemos ver coisas que são invisíveis a nossos sentidos corporais. Ninguém nega que verdades geométricas e matemáticas são «vistas» desta maneira. Provar uma proposição significa dar a ela uma forma, pela análise, simplificação, transformação, ou dissecação, através da qual a verdade pode ser vista; além deste ver não há nem possibilidade nem necessidade de qualquer outra prova.
Podemos ver com a luz do intelecto coisas que estão além da matemática e da geometria? De novo, ninguém nega que podemos ver o que outra pessoa significa, algumas vezes mesmo quando não se expressa acuradamente. Nossa linguagem do dia a dia é uma testemunha constante deste poder de ver, de apreender ideias, que é bastante diferente dos processos de pensar e formar opiniões. Produz instantâneos de compreensão:
Até onde Agostinho se refere, a fé é o coração da questão. A fé nos diz o que há para compreender; purifica o coração, e assim permite a razão beneficiar da discussão; capacita a razão para alcançar uma compreensão da revelação de Deus. Em resumo, quando Agostinho fala de compreensão, tem sempre em mente o produto de uma atividade racional para a qual a fé prepara o caminho. (Etienne GIlson)
Como os budistas dizem, a fé abre o «olho da verdade», também chamado o «Olho do Coração» ou o «Olho da Alma». Agostinho insistia que «todo nosso afazer nesta vida é restaurar a saúde do olho do coração através do qual Deus pode ser visto». O grande sufi persa Rumi diz do «olho do coração, que é setenta vezes e do qual estes dois olhos sensíveis são apenas os coletores»; enquanto John Smith o Platonista aconselha: «Devemos fechar os olhos dos sentidos, e abrir este brilhante olho de nossa compreensão, esse outro olho da alma, como o filósofo chama nossa faculdade intelectual, que de fato todos têm, mas poucos usam». O teólogo escocês Ricardo de São-Victor diz: Pois o sentido exterior apenas percebe coisas visíveis e só o olho do coração vê o invisível».