O objeto próprio da inteligência humana, que é a quididade da coisa sensível, deve corresponder aparentemente ao que é atingido imediatamente por esta faculdade. Todo um conjunto de textos de Tomás de Aquino no-lo sugere. Lidos com ingenuidade, estes textos parecem atestar que a essência assim apreendida é, de um só golpe, desvendada a nossos olhos: “o intelecto atinge a pura quididade da coisa sensível. . . ” (De Veritate, q. 10, a. 6, ad 2 e In Boet. de Trinitate, q. 6, a. 3). Assim se compreenderá de pronto “o que seja o homem” e “o que seja o boi”.
Tomadas absolutamente e sem alguma reserva, tais fórmulas parecem tão manifestamente contrárias à experiência que é impossível de se crer que o pensamento de Tomás de Aquino aqui se exprima de maneira comedida. Quem ousaria pretender que basta olhar em torno a si para captar, com um só olhar, a natureza profunda das coisas? De fato, em outras passagens. Tomás de Aquino fala diferentemente: “as formas substanciais em si mesma nos são desconhecidas, mas se nos manifestam por seus acidentes próprios” (De Spirit. Creat., a. 11, ad 3) “porque as essências das coisas nos são desconhecidas . . . porque as diferenças essenciais nos são desconhecidas. . . ” (De Ver. q. 4, a. 1, ad 8; e Cont. Gent. III, c. 91).
Aparentemente estas fórmulas vão contra o que foi dito acima. Tomás de Aquino, todavia, não deve ter visto aqui oposição irredutível pois é em um mesmo artigo (De Spirit. Creat., a. 11, ad 3 e ad 7) que afirma simultaneamente: de um lado, que a inteligência em sua primeira operação capta a essência das coisas e, de outro, que as formas substanciais nos são desconhecidas. Convém, portanto, considerar mais de perto o que é efetivamente atingido na primeira apreensão da inteligência humana.
Uma doutrina bem demonstrada vai nos colocar no caminho da solução. O que é conhecido por nós, pergunta o Doutor angélico, é o mais universal? (Cf. Ia Pª, q. 85. a. 3) Conclui-se, no artigo citado, ser efetivamente o mais universal o que primeiro é apreendido. Assim, não se capta primeiro as essências específicas, que correspondem a conceitos mais particulares, mas os gêneros mais elevados: a noção de “animal”, por exemplo, é anterior à noção de “homem”, e o mesmo acontece em todos os casos semelhantes. Tomás de Aquino precisa, por outro lado, que este conhecimento mais geral é também mais confuso. Se se vai até ao princípio na aplicação desta doutrina, será preciso dizer que o que é captado, em primeiríssimo lugar nas coisas pela inteligência, é a essência sob seu aspecto mais comum de ser, ou a ideia de alguma coisa que existe. Atinge-se esta outra afirmação, igualmente clássica no peripatetismo, que o ser é aquilo que é concebido em primeiro lugar, e aquilo em que as outras noções se esclarecem: “illud quod primo intellectus concipit quasi notissimum et in quo omnes conceptiones resolvit est ens” (De Verit., q. 1, a. 1). Subentende-se que o ser, do qual se trata aqui, não é precisamente o ser enquanto ser, apreendido formalmente pelo metafísico, mas a noção mais comum e mais determinada de ser. O primeiro olhar do espírito humano atinge as coisas confusamente como seres.
A partir deste primeiro dado, a inteligência progride em duas direções principais:
– primeiro, no sentido da determinação da essência por diferenças específicas que a distinguirão segundo sua pertença hierarquizada em gêneros e espécies diversas; orienta-se então para a apreensão das naturezas particulares que se exprime, no fim, em uma definição última: o homem é um animal dotado de razão;
– ou, permanecendo no nível do ser, progride a inteligência no sentido das determinações mais universais desta noção (propriedades transcendentais, unidade, verdade, bondade, por exemplo): elabora-se neste caso uma metafísica.
Em definitivo, no que nos concerne presentemente, é preciso afirmar que a apreensão da essência das coisas pela inteligência é compreendida entre os dois extremos, isto é, entre o primeiro dado confuso do conhecimento intelectual e a definição da coisa, podendo a expressão “quidditas sensibilis” ser aplicada ao mesmo tempo e proporcionalmente a um e a outro destes estados do conhecimento.
No peripatetismo não se erra em proclamar que face a seu objeto próprio, ou em seu ato simples, uma potência de conhecer não se pode enganar. Assim, em sua primeira apreensão da essência das coisas, o intelecto humano não pode errar, “circa quod est non potest falli” (cf. Ia Pª, q. 85, a. 6).
Os esclarecimentos precedentes permitem ajustar esta fórmula que pode prestar-se a equívocos. A primeira operação do espírito, a “indivisibilium intelligentia”, é com efeito infalível: o que captamos imediatamente é tal como captamos, mas só se trata aqui de uma apreensão confusa. A definição precisa, exprimindo adequadamente a essência da coisa, só virá no termo de um trabalho de análise e de comparação extremamente complexo onde o erro poderá aparecer. Se, por exemplo, terminarmos por definir o homem como um “animal racional alado”, enganar-nos-erros. Indiretamente, pois, poderá o erro introduzir-se no conhecimento da essência das coisas. Aqui ainda a doutrina de Tomás de Aquino é menos simplista do que possa parecer em certos manuais. [Gardeil]