alegorismo

De início, digamos: não é fácil resistir ao pendor alegórico. Não há muito que se afirma, com suspeita veemência, que o mito não é alegoria, mas, sim, tautegoria (o primeiro foi Schelling; um século depois, Cassirer). E se insinuamos que a veemência desperta suspeitas é porque, na verdade, não incidiu ainda tão vigoroso acento no tautegorismo do mito, que para sempre ensurdecêssemos ao apelo do alegorismo. Ainda escutamos o apelo quando, respondendo a tácita ou expressa pergunta acerca do significado de um mito ou de algum de seus mais relevantes episódios, respondemos com a explicação que melhor nos pareça, em vez de repetir literalmente o relato, o que, evidentemente, deveríamos fazer, caso estivéssemos radicalmente persuadidos de que a tautegoria é propriedade inalienável do que quer que se haja por mítico. A não ser que repetindo o que já escrevemos em outro contexto, a pergunta: «Que significa…?» se refira à significação que o mito confere, e não à que lhe é conferida. Quanto a mim, estou convencido de que um mito confere significação e que nada existe que lha confira a ele. Admitamos, todavia, que em algum dos mais escusos recônditos do alegorismo se esconda pelo menos um germe de veracidade, isto é, que, de algum modo, o mito «quer dizer» o que efetivamente «não diz». Deixemos à margem da discussão o «o não diz» e prestemos o melhor de nossa atenção ao «quer dizer». O mito «quer dizer», e só isso importa. Que diga ou não o que quer dizer, é uma alternativa que não se pode decidir levianamente. Mas, ao que nos parece, no «quer dizer» já está implícito que o mito diz o que quer dizer. Por que não havia de dizer o que quer? A quase irremediável confusão só nasce com o desacordo dos intérpretes acerca do que o mito lhes diz, o que ainda não significa que o mito não diga o que quer dizer, mas tão-só que os intérpretes não acertam e não se concertam no que tange o já dito pelo mito que o quis dizer. Contra mim mesmo falo: muitas vezes defendi a opinião de que a exegese alegórica dos mitos foi um lamentável transvio. Não que hoje pense o contrário. Só pretendo descobrir uma acertada consequência do [44] alegorismo. Emendemos a fórmula: o mito «quer dizer» e diz o que efetivamente diz. A exegese alegórica dos mitos gregos não se pode ter exercido totalmente em vão durante mais de dois mil e quinhentos anos: fenômenos telúricos e urânicos, sentimentos e emoções humanas, reações desesperadas dos indivíduos às irresistíveis pressões da coletividade, situações-limites, como o nascimento e a morte, as metamorfoses do homem, designadamente, a passagem da infância à puberdade — entre tudo isso, há o que poderia ser o dito que um mito quis dizer. Por enquanto, dou-me por satisfeito com esta conclusão: assim encarado, o mito não é certamente «biografia dos deuses»; é só maneira de se falar do mundo e do homem. [EudoroMito:44-45]