VIDE aletheia
O erro de Platão foi fatal. Ele — não Aristóteles, que tentou ao máximo reparar o dano (N2, 228/N4, 171) — iniciou o declínio da a-letheia para a “correção” e para a verdade como adequação (GA34, 21ss; p, 201ss/215ss). Aletheia era originalmente o aspecto básico da physis (aproximadamente, ” natureza”), e assim ” rejeita essencialmente qualquer questão acerca de sua relação com qualquer outra coisa, tal como o pensamento” (GA65, 329). Em Platão, ela “aparece sob o jugo da idea” (P, 228). Idea, do grego idein, “ver”, refere-se, na explicação de Heidegger, ao “aspecto [Aussehen]” visual dos entes. A ascensão dos prisioneiros para fora da caverna é uma “correção” progressiva da sua visão desta idea e do ente cuja idea ele é. Por conseguinte, aletheia já não é primordialmente uma característica de entes: ela trabalha junto com a alma e consiste numa homoiosis, uma “semelhança”, entre elas. Homoiosis tornou-se desde então adaequatio e depois “concordância”, e desde Descartes a relação entre alma e entes tornou-se a relação sujeito–objeto, mediada pela “representação”, o declínio degenerado da idea de Platão. Verdade torna-se correção, e seu “espaço de jogo [Spielraum]”, o aberto, é negligenciado (GA65, 198, 329ss).
A explicação de Heidegger foi atacada por Friedländer, 221-229: 1. Não é certo que alethes venha de a- e lanthanein. 2. Mesmo se vier, raramente significa “desencoberto” em Homero, Hesíodo e autores posteriores, mas possui três sentidos principais: a correção do discurso e da crença (epistemológico); a realidade do ser (ontológico); a veracidade, honestidade e consciência de um indivíduo ou personalidade (“existencial”). 3. Estes três aspectos de aletheia estão unidos em Platão. A ascensão da caverna é uma ascensão do ser, do conhecimento e da existência. Heidegger compreende mal isto. Ele presume que, se Platão enxerga a verdade como correção da apreensão, então ele omite seus outros sentidos, ao passo que, se outro sentido reaparece, é porque Platão é indeciso e “ambíguo”. Os três sentidos se fundem em Platão. 4. Interpretar a verdade como desencobrimento não o salvaria da subjetividade moderna: o desencobrimento deve ser desencobrimento para alguém.
Em 2 e 3 Friedländer está certo. Heidegger aceita o 2, e implicitamente o 3, em EPAD (77s/447). Suas tentativas de encontrar aletheia como “desencobrimento” em Platão invariavelmente falham. Quando Platão diz que as coisas que “fazemos” quando seguramos um espelho não são entes tei aletheiai, e que as coisas que os pintores fazem não são alethe (República, 596d,e), Heidegger acredita que ele queira dizer que coisas em espelhos e em pinturas não estão “desencobertas”. (Ele também diz que para compreendermos como é possível dizer que fazemos coisas ao segurar um espelho, devemos compreender “fazer” num “sentido grego” especial.) (GA6, 206ss/N1, 177ss) Mas as coisas não estão mais encobertas em um espelho do que na carne. A questão de Platão é que coisas em um espelho não são reais, não alethe no sentido ontológico. Também não é verdade que idea — e seu quase-sinônimo eidos, ” forma” — signifique “aspecto, aparência”; a assunção de que os gregos, ou alguém mais, usavam as palavras invariavelmente de acordo com suas raízes etimológicas não tem fundamento (cf. NI, 200/N1, 172).
As interpretações de Heidegger de aletheia e de Platão são indefensáveis. O que não significa que Friedländer esteja certo em 4. Este despreza a distinção de Heidegger entre o aberto e o desvelamento de entes particulares, e também sua crença de que somos feitos, e revelados como, o que somos pela abertura do aberto, não já prontos esperando que as coisas sejam desencobertas para nós. No vocabulário kantiano rejeitado por Heidegger, Friedländer pensa em termos “empíricos” muito mais do que “transcendentais”. Heidegger está muito mais perto de Platão, propriamente interpretado, do que ele admite. [DH]