número

(gr. arithmos; lat. numerus; in. Number; fr. Nombre; al. Zahl; it. Numero).

Na história deste conceito, podem-se distinguir quatro fases conceptuais diferentes, que deram lugar a quatro definições diferentes: 1) fase realista; 2) fase subjetivista; 3) fase objetivista; 4) fase convencionalista.

1) A fase realista é caracterizada pela tese de que o número é um elemento constitutivo da realidade, por ser acessível à razão, mas não aos sentidos. Essa foi a tese dos pitagóricos, que, segundo relata Aristóteles, acreditavam que “as coisas são número”, ou seja, “compostas de número como seus elementos” (Met., XIV, 3, 1090 a 21). A esta crença está ligada a definição de número como “sistema de unidades”, própria dos pitagóricos (J. Stobeo, Ecl., I, 18): essa definição serviu de modelo à de Euclides (“multidão de unidades”, El., VII, 2) e durante muito tempo fundamentou a matemática. Para Platão, o número encontrava-se onde houvesse uma ordem, um limite do ilimitado. Entre a multiplicidade ilimitada (p. ex., dos sons vocais) e a unidade absoluta, o número se insere como um limite (p. ex., distinção e enumeração das letras do alfabeto), e por isso sempre se encontra onde há ordem e inteligência (Fil., 18 a ss.). Por outro lado, o número neste sentido não está ligado a algo de visível ou de tangível: é, portanto, diferente do número utilizado pelo homem em suas tarefas práticas (Rep., 525 d). Essa tese (que não é a dos platônicos de tendência pitagórica, que consideravam as ideias como número; cf. Aristóteles, Met., XIV, 3) é substancialmente apoiada por Aristóteles: “As entidades matemáticas não são mais substâncias que os corpos; precedem na lógica, mas não na existência, as coisas sensíveis, e não podem existir separadamente. Mas, desde que não podem sequer residir nas coisas sensíveis, não devem existir de modo absoluto, ou devem existir de algum modo especial, que não é a existência absoluta” (Met., XIII, 3, 1077 b 12). Este modo de existência especial, próprio das entidades matemáticas, é definido pelas próprias proposições matemáticas: “É estritamente verdadeiro” — diz Aristóteles — “que existem entidades matemáticas e que elas são tais quais a matemática diz que são” (Ibid., XIII, 3, 1077 b 31). Aristóteles pretende dizer que as entidades matemáticas têm uma existência análoga às entidades da física (p. ex., ao movimento): são abstraídas das causas sensíveis, mas não são separáveis destas. Desse ponto de vista, o número é “uma pluralidade medida ou uma pluralidade de medida”, e a unidade não é um número, mas medida do número (Met., XIV, 1, 1088 a 5): definição que repete a de Platão e antecipa a de Euclides, já lembrada.

2) A segunda fase conceptual da noção de número pode começar com Descartes: “O número que consideramos em geral, sem refletirmos sobre coisa alguma criada, não existe fora de nosso pensamento, assim como não existem todas as outras ideias gerais que os escolásticos incluem sob o nome de universais” (Princ. phil, I, 58). Em outras palavras, o número é uma ideia, um ato ou uma manifestação do pensamento. A definição daí resultante é a de operação.- o número é uma operação de abstração executada sobre coisas sensíveis. Esse conceito é repetido muitas vezes na filosofia moderna. Hobbes pôs o número entre as coisasnão existentes”, que são apenas “ideias ou imagens” (De corp., VII, § 1). Locke vê no número uma ideia complexa, mais precisamente um “modo simples obtido através da repetição da unidade” (Ensaio, II, 16, 2); no mesmo sentido, Leibniz diz que o número é uma ideia adequada ou completa, ou seja, “uma ideia tão distinta que todos seus ingredientes são distintos” (Nouv. ess., II, 31,1). Berkeley afirma que o número “é inteiramente criatura do espírito” (Princ. of Human Knowledge, I, 12). Newton afirma que por número é preciso entender “não tanto a multidão das unidades quanto a relação entre a quantidade abstrata de uma qualidade e uma quantidade do mesmo gênero que se assume como unidade” (Arithmetica universalis, cap. 2). Definição análoga é a de Wolff, para quem “o número geralmente tem com a unidade a mesma relação que uma reta qualquer pode ter com uma reta dada” (Ont., § 406). Esta definição, como a de Newton, faz do número a operação com que se estabelece uma relação de medida.

Kant só fazia expressar o mesmo conceito geral ao afirmar que o número é um esquema , mais precisamente que ele é “a representação que compreende a sucessiva adição de um a um (homogêneos)” (Crít. R. Pura, Anal. dos princ, cap. 1). A novidade do conceito kantiano é que o número não é uma operação empírica, efetuada em material sensível, mas uma operação puramente intelectual, que atua sobre a multiplicidade dada pela intuição pura (do tempo), que é absolutamente homogênea. Isto faz do número algo independente da experiência, dotado de um gênero de validade que não é o empírico; mas o número continua sendo uma operação do sujeito. Enquanto esta concepção kantiana era representada várias vezes na filosofia do séc. XIX, Stuart Mill voltava ao conceito do número como operação empírica de abstração: “Todos os número devem ser número de algo: não há número em abstrato”. Portanto, os número são produtos de uma “indução real, de uma inferência real de fatos a fatos”, e tal indução só é ocultada pela sua natureza abrangente e pela consequente generalidade de linguagem em que desemboca (Logic, II, 6, 2). De certo modo, as posições de Kant e de Stuart Mill são típicas dessa fase subjetiva do conceito de número: o número é uma operação intelectual pura para Kant, é uma generalização empírica para Stuart Mill, mas em ambos os casos pertence à esfera da subjetividade. Pertencem a essa concepção do número as doutrinas de Cantor e de Dedekind. Para Cantor, o fundamento do número é a faculdade que o pensamento tem de agrupar os objetos e de abstrair da natureza e da ordem deles (o que dá lugar ao número cardinal) ou apenas da natureza deles (o que dá lugar ao número ordinal). Dedekind, por sua vez, fundou o conceito de número na operação de emparelhar ou acoplar as coisas. Conquanto matematicamente profícuas, essas noções mantêm o conceito de número no âmbito da subjetividade.

3) A terceira fase conceptual da noção de número (a de número objetivo, mas não real) foi iniciada pela obra de Frege Fundamentos da aritmética (1884). Frege atribuía caráter conceptual ao número, mas também objetividade. Isto, em primeiro lugar, exclui que o número seja uma operação ou uma realidade psicológica, uma ideia no sentido setecentista do termo: “O número não constitui um objeto da psicologia nem pode ser considerado resultado de processos psíquicos, assim como não se pode considerar desse modo o Mar do Norte. Faço uma distinção nítida entre o que é objetivo e o que é palpável, real e ocupa espaço. P. ex., o eixo terrestre e o bari-centro do sistema solar são objetivos, mas eu não diria que são reais como o é a terra” (Die Grundlagen der Arithmetik, § 26; trad. it., pp. 70-71). A matemática já havia estabelecido a insuficiência da definição de número como coleção de unidade, por isso levaria a excluir 0 e 1 como número (Aristóteles reconhecia esse fato no que diz respeito ao 1; Met., XIV, 1, 1088 a 5). Frege assume como base da definição de número a extensão do conceito e diz que “o conceito F tão numeroso quanto o conceito G sempre que existe a possibilidade de pôr em correspondência biunívoca os objetos pertinentes a G os pertinentes a F”. Em vista disso, dá a seguinte definição de número: “O número natural que cabe ao conceito .Fnada mais é que a extensão aFdo conceito ‘tão numeroso quanto’” (Ibid., § 68, p. 134). Esta definição de Frege foi expressa por Russell em termos de classes, e não de conceitos. Russell diz: “Quando se tem uma relação termo a termo entre todos os termos de um conjunto e todos os termos de outro, dizemos que os dois conjuntos são semelhantes. Podemos ver então que dois conjuntos semelhantes têm o mesmo número de termos, e definirmos o número de um conjunto dado como a classe de todos os conjuntos semelhantes a ele. Resulta a seguinte definição formal: ‘o número dos termos de uma classe dada define-se como a classe de todas as classes semelhantes à classe dada’” (Our Knowledge of the External World, 3a ed., 1926, cap. 7; trad. fr., p. 163). A definição de Russell, que serviu de base para Principles of Mathematics (1905) e Principia mathematica, que ele publicou em 1910 em colaboração com Whitehead (as duas obras fundamentais da lógica matemática contemporânea), teve grande aceitação na filosofia e na matemática contemporâneas. Contudo, algumas vezes pareceu restrita demais para as possibilidades de desenvolvimento da matemática hodierna, que não pretende ficar ligada a um conceito de número que lhe seja de algum modo preestabelecido.

4) A quarta fase foi-se configurando em estreita conexão com a axiomática moderna, e pode ser associada com os nomes de Peano, Hilbert, Zermelo, Dingler. Para esta, o número é um signo, definido por um sistema adequado de axiomas. Dingler diz: “Construímos uma série de signos (sinais gráficos) passíveis de reprodução, que deve possuir as seguintes propriedades: a) a série tem um primeiro termo; b) a série possui uma regra de construção enunciável de modo finito tal que: A) está sempre determinado univocamente qual termo da série vem imediatamente à direita de um termo já assinalado; B) cada termo da série é diferente de todos os termos que o precedem à esquerda” (Die Methode der Physik, 1937, cap. 11, 3, § 2; trad. it., pp. 137-38). Este ponto de vista pode ser resumido do seguinte modo:

a) não existe um objeto ou entidade única chamada “número”, cujas especificações sejam os número definidos nos diversos sistemas numéricos;

b) a validade dos diversos sistemas numéricos depende apenas da coerência intrínseca de cada sistema, definida pelos axiomas fundamentais;

c) o conceito de número presente em um sistema numérico não está ligado a uma interpretação determinada, mas é susceptível de interpretações indefinidamente variáveis. Em outros termos o número não está imune a interpretações (como um sinal que nada signifique) e não está ligado a uma interpretação única, privilegiada, mas caracteriza-se pela possibilidade de interpretações diferentes.

É esta a noção do número que costuma ser pressuposta nos mais recentes estudos de matemática. [Abbagnano]


A concepção escolástica do número tem seu ponto de partida na definição de Aristóteles: O número é uma pluralidade medida (ou medível) pela unidade (Metafísica, X, 6; 1.057 a 3). O conceito designa, pois em primeiro lugar, uma pluralidade, ou seja, unidades que entre si se distinguem; e, em segundo lugar, que esta pluralidade, como unidade repetida, é reunida mentalmente para constituir uma nova unidade; a definição não é aplicável ao número “um”. O fundamento ontológico do número é constituído pela pluralidade de coisas numeráveis; no número abstrato não importa a peculiaridade especial destas coisas, só interessa que são entes e unidades. O número, enquanto tal, resulta só da união mental de muitas unidades, por isso não é um ente real, mas só um ente de razão. Distinguem-se o número transcendental, formado pelos conceitos transcendentais de unidade e pluralidade (que importa distinguir do conceito transcendente, ou seja, do que não pode exprimir-se por uma equação algébrica com coeficientes racionais), e o número predicamental, cuja noção se obtém a partir da unidade quantitativa, do contínuo divisível até ao infinito ( quantidade ); só a quantidade oferece a base ontológica de todos os números, mesmo dos fracionários. S. Tomás de Aquino reserva o nome de número para o predicamental, ao passo que caracteriza o número transcendental geralmente só como pluralidade.

Também na matemática moderna se entende, acima de tudo, por números os números naturais (1, 2, 3 . . .). Peano deu-lhes uma base aritmeticamente suficiente que todavia não tem a pretensão de ser também uma fundamentação filosófica. Partindo dos cinco axiomas formulados por Peano (ou também de outras axiomas), convenientemente escolhidos, estabelecem-se funções uniformes de tal maneira que S (x, y), P (x, y), x / y equivalem às ordinárias x+y, xy, x>y. Com x/y designa-se uma relação de duas partes unimembres entre x e y, caracterizada aqui pelo fato de ser invertível só quando x e y são iguais (portanto só se verifica x/y, y/x quando x = y), como também pelo fato de a relação ser transitiva, ou seja, se x/y, y/z, então sempre se verifica x/z. Esta relação de ordem x/y permite colocar numa sucessão ou sequência os números naturais.

Mais chegada à filosofia está a fundamentação dos números baseada na teoria de conjuntos. Por uma adequada coordenação dos elementos dos conjuntos (classes lógicas) a, b entre si, nasce uma nova relação, das do tipoequivalência”, a qual dá origem a uma distribuição dos conjuntos em classes (Hasse). Cada classe chama-se “número” (Frege, Russell). Contar um conjunto quer dizer determinar a que classe pertence. Se os conjuntos (finitos ou, com certa reserva, também infinitos) a, b, que não possuem nenhum elemento comum, pertencem às classes A, B, o enunciado “ou em a ou em b” determina novamente um conjunto, tal como s, cuja classe B, por depender só das classes A, B, pode chamar-se S (A, B). (Admitamos que quatro ovos e cinco ovos sejam tais conjuntos, pertencentes às classes 4 e 5 e sem nenhum elemento comum. Há também, então, outro conjunto, cuja classe depende unicamente das classes 4 e 5 e cujos membros se repartem nos conjuntos quatro ovos de tal sorte que se encontram todos no conjunto de quatro ou no de cinco ovos. Esta classe, a classesoma de 4 e 5, chama-se 9). Outros procedimentos da teoria dos conjuntos dão origem a uma segunda função de classe P (A, B) e a uma relação de ordem A/B, de maneira que, S (A, B), P (A, B) e a relação de ordem A/B equivalem de novo às ordinárias A+B, AB, A>B (Kamke). Com 7+5 = 12, o 12 não é decomposto nem produzido, mas sim caracterizado como o “relatum” — soma de 7 e 5.

Na “introdução” dos números artificiais (o 0, os negativos, os racionais, os reais-irracionais, os complexos, etc.) encontram-se círculos viciosos, em consequência de aplicações, ficções, analogias geométricas e aproximações ao que preliminarmente se deve definir. Estes números nascem, antes, de números naturais ou de números já produzidos, tratados com os recursos unificados, também filosoficamente importantes, da álgebra moderna (Hasse, van der Waerden). Os números 2,+2, 2:1, 2+0i não são idênticos; correspondem-se isomorficamente numa adequada sintonização de domínios numéricos antigos e de novos campos parciais (Hasse). As relações de ordem logicamente possíveis devem ser estabelecidas sempre em. forma própria e peculiar e transferidas a outros números por uma coordenação apropriada entre domínios antigos e campos parciais novos. As relações de cálculo e de sucessão entre números naturais e números artificiais correm frequentemente paralelas a outras semelhantes existentes entre grandezas físicas; este é o objeto de pesquisa da teoria da medição. — Para cada classe de número Landau dá uma construção completa. Todavia, há outras questões filosoficamente dignas de atenção, p. ex., a construção teóricoideal dos números reais (van der Waerden). —filosofia da matemática. — Steele. [Brugger]