A proposição usualmente conhecida pela expressão cogito ergo sum, e muitas vezes pelo simples termo cogito, é uma das teses centrais de Descartes. NO DISCURSO DO MÉTODO (IV) escreve, com efeito: “e observando que esta verdade – eu penso, logo existo – era tão firme e estava tão bem segura, que não podiam abalá-la as mais extravagantes suposições dos cépticos, julguei que podia admiti-la sem escrúpulo como primeiro princípio da filosofia que procurava”.
Já na época de Descartes se fez notar ao filósofo que a proposição em questão tinha inúmeros antecedentes. O que teve mais repercussões, foi o de Santo Agostinho, que vários correspondentes irão apontar a Descartes.
Em diferentes respostas a estas observações, Descartes não disse se já tinha encontrado essas passagens antes das suas próprias investigações, mas limitou-se a pôr em relevo que enquanto Santo Agostinho se serve dos seus argumentos para provar a certeza do nosso ser, ele, Descartes, serve-se dos seus para dar a entender que o eu que pensa “é uma substância imaterial”, “o que acrescenta ele – são duas coisas diferentes”.
Quanto ao significado do cogito, a opinião do próprio Descartes a esse respeito é que não se trata de encontrar apenas uma proposição apodíctica que sirva de firme rochedo ao edifício da filosofia, mas também de provar “a distinção real entre a alma e o corpo”. Pode entender-se o cogito como o ato de duvidar pelo qual se põem em dúvida todos os conteúdos, atuais e possíveis, da minha experiência, excluindo-se da dúvida o próprio cogito. É este o significado principal e aquele a que a tradição sobretudo sublinhou. Deve mencionar-se a distinção entre os diversos sentidos do pensar-se a si mesmo. No espírito de Descartes – e na raiz etimológica do vocábulo – cogitar significa qualquer ato psicológico, desde que pertença de um modo direto à realidade do íntimo, como diferente da realidade das substâncias externas.
São múltiplas as objecções levantadas pelo princípio cartesiano. Os escolásticos argumentavam que o cogito não pode ser um primeiro princípio no sentido em que o pode ser o princípio de contradição, sobretudo à luz de uma das pretensões do princípio cartesiano: o ser apodíctico. Outros assinalavam que há uma falha no raciocínio de Descartes: a supressão da premissa maior:
“tudo o que pensa, existe”, à qual deveria seguir-se a premissa menor, “eu penso”, e a conclusão, “logo, existo”. O próprio Descartes já respondeu às duas objecções, as quais são de natureza formal, e que os escolásticos continuam a usar. Outra objecção sustenta que não é legítimo passar da afirmação “eu penso” à afirmação “logo eu sou uma coisa pensante”, isto é, de um ato a uma substância. O motivo dessa passagem foi atribuído ao suposto substancialista da filosofia de Descartes. [Ferrater]
Abrevia-se nessa palavra a expressão cartesiana ” cogito ergo sum” (Discours, IV; Méd., II, 6), que exprime a auto-evidência existencial do sujeito pensante, isto é, a certeza que o sujeito pensante tem da sua existência enquanto tal. Trata-se de uma tendência de pensamento que reaparece várias vezes na história, ainda que com fins diversos. S. Agostinho valeu-se dele para refutar o ceticismo acadêmico, isto é, para demonstrar que não se pode permanecer firme na dúvida ou na suspensão do assentimento. Quem duvida da verdade tem certeza de que duvida, logo de que vive e pensa; portanto, na própria dúvida está a certeza que a leva à verdade (Contra Acad., III, 11; De Trin., X, 10; Solil, II, 1). De S. Agostinho, o mesmo tipo de pensamento passa para alguns escolásticos; p. ex., em Tomás de Aquino: “Ninguém pode pensar com assentimento (isto é, crer) que não é; já que, porquanto pensa alguma coisa, percebe que é” (Dever., q. 10, a. 12, ad. “0. Na mesma época de Descartes, esse princípio é retomado por Campanella (Mel, I, 2, 1). Embora esse tipo de pensamento tenha servido a fins diferentes (S. Agostinho utiliza-o para demonstrar a transcendência da Verdade — que é Deus mesmo — e a sua presença na alma humana; Campanella utiliza-o para demonstrar a prioridade de uma “noção inata de si” sobre qualquer outra espécie de conhecimento; e Descartes para justificar o seu método da evidência) e seu significado preciso seja, portanto, diferente em um ou outro filósofo, poucas vezes se duvidou de sua validade geral. Para toda filosofia que recorra à consciência como instrumento da indagação filosófica, o cogito deve mostrar-se indubitável, pois na realidade não é senão a formulação do postulado metodológico de tal filosofia. Mas mesmo as filosofias que não reconhecem tal postulado fazem uso do cogito e consideram-no válido. Assim fazem, p. ex., Locke, que vê nele “o mais alto grau de certeza” (Ensaio, IV, 9, 3), e Kant, que vê nele a própria apercepção pura ou consciência reflexiva. Na filosofia contemporânea, Hus-serl assume explicitamente o cogito como ponto de partida da sua filosofia (Ideen, I, § 46; Cart. Med., § 1) e recorre a ele continuamente ao longo de suas análises, considerando-o como a própria estrutura da experiência vivida (Erlebniss) ou consciência. O próprio Heidegger não põe em dúvida a validade do cogito, embora reprove em Kant o fato de, com ele, ter restringido o eu a um “sujeito lógico”, isolado, “sujeito que acompanha as representações de uma forma ontologicamente de todo indeterminada” (Sein und Zeit, § 64).
Diante de aceitação tão ampla, as críticas foram muito escassas. Pode-se pensar na crítica de Viço, mas é fácil de ver que ela, na verdade, é uma crítica do Cogito. Viço nega que a “consciência” do próprio ser possa constituir a sua “ciência”, ou pelo menos o princípio dessa ciência. A ciência, de fato, é conhecimento de causa e o cogito cartesiano seria princípio de ciência só no caso de a consciência ser a causa da existência (De antiquissima italorum sapientia, I, 3). Mas com isso Viço não nega que o cogito constituía uma certeza válida, apenas se preocupa em corrigi-lo afirmando que Descartes não deveria ter dito “penso, logo existo” (Prima risposta al Giornale dei letterati, § 3). A crítica de Kierkegaard visa mais ao alcance do que à validade do cogito cartesiano: “O princípio de Descartes ‘penso, logo sou’, à luz da lógica, é um jogo de palavras, pois aquele ‘sou’ outra coisa não significa, do ponto de vista lógico, senão ‘sou pensante’ ou ‘penso’” (Diário, V, A, 30). Em outros termos, segundo Kierkegaard, a proposição cartesiana é puramente tautológica, já que seu pressuposto é a identidade da existência com o pensamento. Uma tatulogia, porém, ainda é uma proposição válida. Em 1868, Peirce respondia negativamente à pergunta “temos autoconsciência intuitiva?”, na qual a palavra autoconsciência estava por conhecimento da própria existência. Peirce não contestava validade do cogito, mas, com provas psicológicas e históricas, acreditava poder concluir que “não há necessidade de supor uma autoconsciência intuitiva, desde que a autoconsciência pode facilmente ser resultado de inferência” (Coll. Pap., 5.263). A rigor, nem mesmo essa é uma crítica ao cogito. A crítica mais simples e decisiva essa noção pode ser considerada a de Nietzsche: ‘”Pensa-se, logo há alguma coisa que pensa’: eis a que se reduz a argumentação de Descartes. Mas isso significa somente considerar verdadeira apriori a nossa crença na ideia de substância. Dizer que, quando se pensa, é preciso que haja alguma coisa ‘que pense’ é apenas a formulação do hábito gramatical de acrescentar um agente à ação. Em resumo, aqui não se faz mais do que formular um postulado lógico-metafísico, em vez de contentar-se em constatá-lo… Se reduzirmos a proposição a isto: ‘Pensa-se, logo há pensamentos’, daí resultará uma simples tautologia e a ‘realidade do pensamento’ não é questionada de tal modo que se é levado a reconhecer a ‘aparência’ do pensamento. Mas Descartes queria que o pensamento não fosse uma realidade aparente, mas fosse um ‘em si’” (Wille zur Macht, ed. 1901, § 260). Essas considerações de Nietzsche constituem uma crítica ao princípio do cogito que muitos filósofos contemporâneos aceitariam. Com efeito, Carnap refere-se a ela explicitamente, repetindo-a. “A existência do eu”, diz ele, “não é um estado de fato primitivo do dado. Do cogito não resulta o sum; de sou consciente não se segue que sou, mas apenas que há uma experiência consciente (Erlebniss). O eu não pertence à expressão das experiências fundamentais vividas, mas constitui-se mais tarde, essencialmente com o fim de delimitar seu âmbito pelo âmbito do outro… Em lugar da expressão de Descartes, seria necessário colocar esta outra: ‘Esta experiência é consciente; logo, há uma experiência consciente’; mas certamente isso seria pura tautologia” (Der logische Aufbau der Welt, 1928, § 163). No entanto essa crítica está longe de ser compartilhada pelos próprios empiristas lógicos e Ayer, p. ex., reafirma, substancialmente, a validade do princípio cartesiano como verdade lógica, mesmo limitando seu alcance. “Se alguém pretende saber que existe ou que é consciente, sua pretensão deve ser válida simplesmente porque o seu ser válida é uma condição do seu ser feita” (The Problem of Knowledge, 1956, p. 53). A posição de Nietzsche sobre esse ponto era mais radical e, provavelmente, mais correta (v. consciência). [Abbagnano]