Eu

O “eu” é dado simultaneamente, em todos os atos espirituais do homem, como ponto unitário de referência, portador ou sujeito último e fonte ativa dos mesmos. Manifesta-se primariamente na consciência implícita do eu (autoconsciência) que acompanha todos os atos dirigidos a outros objetos, ou, por outras palavras, é imanente ao olhar direto de nosso espírito projetado para o que é exterior a nós (consciência concomitante ou direta do eu). O espírito nunca se perde totalmente no “outro”, mas interioriza-o, recolhendo-o nas profundezas do próprio “eu”; o conhecimento intelectual só é levado a efeito mediante esta reditio completa (S. Tomás de Aquino), mediante este volver-se do espírito sobre si mesmo. Sobre isto se constrói a consciência desdobrada ou explícita do eu, a qual se segue à consciência direta, se inclina sobre o eu, antes só co-pensado, e o converte em seu único objeto (consciência subsequente ou reflexa do eu). Esta possibilita um autoconhecimento (ou conhecimento do eu) mais vasto e mais profundo. — Interpretam falsamente a consciência do eu aqueles que a restringem ao decurso dos atos. De fato, não concebemos um pensar e um querer suspensos no ar; concebemos somente um pensante e um querente, um sujeito determinado por tais atos. Este, porém, permanece o mesmo enquanto aqueles mudam (eu, que estou agora escrevendo, sinto de maneira inequívoca que. sou exatamente o mesmo que teve e sentiu inúmeras vivências, há tempo desaparecidas, e pelas quais talvez tenha que responder, apesar de ter querido libertar-me delas). Assim, temos conhecimento da substancialidade do eu; na qualidade de substrato permanente, ele sustém e causa os atos como determinações acidentais suas, sem, por sua parte, estar reduzido à condição de ser mera determinação de outro (panteísmo).

Do ponto de vista histórico, convém assinalar que S. Agostinho salientou vigorosamente o eu e a consciência do eu. Aí encontrou ele o ponto de partida indubitável de toda garantia da verdade; pois ninguém pode duvidar, sem que no ato da dúvida esteja incluída uma afirmação certa de sua própria existência. Na Idade Média, esta questão passou a plano secundário. Descartes foi quem primeiro de novo a trouxe à discussão com o seu Cogito, ergo sum (penso, logo existo) e, com isso, exerceu decisiva influência em toda a Idade Moderna. Kant atribui todo conhecimento ao eu transcendental, ou seja, ao eu como fundamento que possibilita o saber; mas este eu não coincide com o eu como coisa em si inacessível ao nosso conhecimento; só o eu moral penetra no em-si. Partindo destas premissas, os idealistas alemães levaram ao extremo o que corria nas veias dos tempos modernos; põem o eu humano absoluto e equiparam-no ao divino, com o que se converte em criador. A filosofia existencial (filosofia da existência) faz recuar o eu para dentro dos limites de sua finitude, mas isso não suprime o perigo de dissolver todos os conteúdos no eu. No que tange à valorização do eu, no Ocidente foi ele geralmente considerado como alto valor; a ele opõe-se o pessimismo, principalmente Schopenhauer, o qual, seguindo o trilho do pensamento hindu considera a extinção do eu como a ¦coisa mais excelsa. Terminologicamente importante é o fato de a moderna psicoterapia (Jung) distinguir o “eu” consciente (em alemão: Ich) do “eu” (em alemão: Selbst) que abarca também o inconsciente (e até o divino). — Lotz. [Brugger]


Referir-nos-emos a dois problemas fundamentais postos por este conceito: 1) – os planos em que se trate a questão do eu. 2) – as doutrinas sobre a índole do eu.

1) – Em termos gerais, costuma tratar-se a questão do eu em três níveis diferentes, mas que não estão absolutamente separados: 1) O PLANO PSICOLÓGICO: Neste caso, o termo eu designa a realidade à qual se referem todos os fatos psíquicos. Este referir-se pode ser interpretado de muitas maneiras. Por um lado, trata-se de uma referência análoga à que existe entre os acidentes e a substância; os fatos psíquicos seriam então acidentes que inerem a um eu concebido substancialmente. Por outro lado, trata-se da referência dos fatos à unidade dinâmica deles. Esta unidade pode ser compreendida, por sua vez, de muitas maneiras. Mas todas estas interpretações ultrapassam a consideração meramente psicológica. Na verdade, o eu psicológico é o chamado “eu empírico”; ao lado dele fala-se de um eu não empírico, mas puro ou transcendental. Tal é o caso de Kant. 2) O PLANO GNOSEOLÓGICO: Kant ilustra insuperavelmente o modo de considerar o eu no plano da teoria do conhecimento. Considera o eu como a unidade que acompanha todas as representações, como o “eu penso” que constitui a percepção pura. O eu, gnoseologicamente falando, é a unidade transcendental da percepção, unidade cujo caráter objetivo a distingue da unidade subjectiva da consciência. Mas este eu é simplesmente um eu para o conhecimento. Na medida em que se põem a Kant os problemas derivados da passagem da razão teórica à razão prática, torna-se-lhe impossível manter a pura concepção da unidade transcendental perceptiva. Então torna-se necessário incluir o eu numa realidade mais ampla que em vez de preceder a sociedade e a história é a própria história. 3) O PLANO METAS: O idealismo alemão, e em especial Fichte, entendeu o eu metafisicamente. Fichte concebe o eu como a realidade anterior à divisão em sujeito e objeto, como a realidade que se põe a si mesma e, com isso, põe o seu oposto. Este eu é algo capaz de conter a consciência empírica como forma particular dele mesmo, mas ao mesmo tempo não pode Fichte evitar as complicações psicológicas do conceito. 2) – Três são as opiniões fundamentais que se têm posto sobre a índole do eu: 1) a dos que continuam aderindo às concepções clássicas segundo as quais o eu é uma substância, tanto se esta é considerada como uma “alma substancialcomo se se lhe atribuem os caracteres da coisa. 2) A dos que negam toda a substancialidade ao eu e sustentam que o eu é um epifenômeno, ou uma pura função, ou um complexo de impressões ou de sensações.

3) A dos que procuram uma solução intermédia, quer por meio de uma combinação eclética, quer fundando-se num princípio diferente.

Pode seguir-se o rasto das três opiniões em muito diversos períodos da história da filosofia ocidental. [Ferrater]


(lat. Ego; in. I, Self; fr. Moi; al. Ich; it. Io).

Este pronome, com que o homem se designa a si mesmo, passou a ser objeto de investigação filosófica a partir do momento em que a referência do homem a si mesmo, como reflexão sobre si ou consciência, foi assumida como definição do homem. Foi isso que aconteceu com Descartes, que foi o primeiro a formular em termos explícitos o problema do eu. “O que sou eu então?”, perguntava Descartes. “Uma coisa que pensa. Mas o que é uma coisa que pensa? É uma coisa que duvida, concebe, afirma, nega, quer ou não quer, imagina e sente, Certamente não é pouco que todas essas coisas pertençam à minha natureza. Mas por que não lhe pertenceriam?… É de per si evidente que sou eu quem duvida, entende e deseja, e que não é preciso acrescentar nada para explicá-lo” (Méd., II). Como se vê, aqui o problema do eu é imediatamente acompanhado pela sua solução: o eu é consciência, relação consigo mesmo, subjetividade. Esta é a primeira das interpretações historicamente dadas do eu. Podem ser enumeradas as outras interpretações seguintes: eu como autoconsciência; eu como unidade; eu como relação.

1) A definição cartesiana do eu como consciência foi imediatamente acolhida e incorporada à tradição filosófica. Locke adotou-a e a reelaborou com o fim de justificar uma característica formal do eu: unidade ou identidade. Dizia: “Quando vemos, ouvimos, cheiramos, provamos, tocamos, meditamos ou queremos uma coisa, percebemos que a fazemos. O mesmo ocorre com nossas sensações e percepções atuais, e nesse caso cada um é para si mesmo o que ele chama de si mesmo, não se levando aqui em conta o fato de que o mesmo eu continue nas mesmas substâncias ou em substâncias diferentes. E como o pensamento é sempre acompanhado pela consciência do pensamento, sendo ela que faz que cada um seja aquilo que cada um chama de si-mesmo, distinguindo-se assim de todas as outras coisas pensantes, nisso apenas consiste a identidade pessoal” (Ensaio, II, 27, 11). Em outros termos, segundo Locke, a identidade do eu não se funda na unidade ou na simplicidade da substânciaalma, mas unicamente na consciência, e é, aliás, essa consciência que se reconhece na diversidade das suas manifestações. Leibniz, embora insistisse na importância daquilo que ele chamava de consciência ou sentimento do eu, não acreditava que ela apenas constituísse a identidade pessoal, e lhe acrescentava “a identidade física e real” (Nouv. ess., II, 27, 10). Este ponto de vista encontra-se frequentemente expresso na filosofia moderna e contemporânea, que às vezes acentuou o caráter ativo ou volitivo da consciência. Foi o que fez, p. ex., Maine de Biran: “A causalidade ou a força (ou seja, o eu), que se manifesta para si mesma só por meio de seu efeito ou do sentimento imediato do esforço que acompanha todo movimento ou ato voluntário, é precisamente como o primeiro raio, a primeira luz captada pela visão interior da mente” (Nouv. ess. d’anthropologie, II, 1). Assim, para Maine de Biran, o eu é a consciência originária do esforço. Mas a melhor expressão da doutrina do eu como consciência foi dada por Kant, que dizia: “Eu, como pensante, sou um objeto do sentido interno, e me chamo alma. O que é objeto do sentido externo se chama corpo. Portanto, a expressão eu, como ser pensante, designa já o objeto da psicologia que se pode chamar de doutrina racional da alma, quando eu não quero saber mais da alma do que aquilo que, independentemente da experiência (que me determina mais de perto e concretamente), se pode concluir a partir desse conceito do eu, presente em cada pensamento” (Crít. R. Pura, Dialética, II, cap. 1). Ao lado desse eu como “objeto do sentido interno”, ou seja, consciência (cf. Prol., § 46), Kant admite uma outra espécie de eu, que marca a transição para uma segunda interpretação desse conceito. A interpretação do eu como consciência foi frequente na filosofia moderna e contemporânea. ‘Rosmini dizia: “A palavra eu une ao conceito geral de alma a relação da alma consigo mesma, relação de identidade; contém, portanto, um segundo elemento, distinto do conceito de alma: é uma alma que se apercebe de si mesma, se pronuncia, se exprime” (Psicol., § 6).

2) A interpretação do eu como autoconsciência nasce da distinção que Kant fizera entre o eu como objeto da percepção ou do sentido interno e o eu como sujeito do pensamento ou da apercepção pura, isto é, o eu da reflexão (Antr., I, § 4, nota; cf. autoconsciência). Esta distinção, que, em Kant, jamais teria conduzido à substancialização metafísica do eu, dada a funcionalidade que Kant atribui ao eu, deveria ser assumida por Fichte como ponto de partida para a doutrina do Eu absoluto. Segundo Kant o eu da reflexão ou da apercepção pura é a condição última do conhecer; Fichte faz dele o criador da realidade. ‘Por ser absoluto”, diz ele, ‘’o Eu é infinito e ilimitado. Ele dispõe tudo o que é: e o que ele não dispõe não é (para ele; mas fora dele nada existe). Mas tudo o que dispõe, ele dispõe como Eu; e dispõe o eu como tudo o que dispõe. Portanto, nesse aspecto, o Eu abarca em si toda a realidade, uma realidade infinita e ilimitada” (Wissenschaftslehre, 1794, III, § 5, II; trad. it., p. 207). Essas teses foram adotadas e ampliadas por Schelling, graças a quem se tornaram expressões características do romantismo. Na obra O eu como princípio da filosofia ou o incondicionado no saber humano (1795), ele identifica o Eu de Fichte com a Substância de Spinoza. “Nessa época”, Schelling escreveu a Hegel, “tornei-me adepto de Spinoza. Quer saber como? Para Spinoza o mundo é tudo, para mim tudo é o Eu.” E embora Hegel negasse essa tese, considerando como saber absoluto (e, portanto, também como realidade absoluta) o saber em que desapareceu a distinção entre Eu e não-Eu, entre subjetivo e objetivo, também ele compartilha da tese do caráter infinito do Eu. Disse: “O Eu, essa consciência imediata de si, aparece em primeiro lugar, por um lado, como imediato, por outro como conhecido em sentido muito mais elevado do que qualquer outra representação. Todas as outras coisas conhecidas pertencem de fato e certamente ao Eu, mas ao mesmo tempo são diferentes dele e, portanto, ganharam conteúdo acidental; o Eu, porém, é a simples certeza de si. Mas o Eu em geral é também, ao mesmo tempo, um concreto, ou melhor, o Eu é o concretissimo, a consciência de si como de um mundo infinitamente múltiplo” (Wissenschaft der Logik, I, livro I; trad. it., I, pp. 65-66). Gentile apenas repetia a colocação fichtiana e romântica quando dizia: “O eu é certamente o indivíduo, mas o indivíduo como sujeito que nada tem a contrapor a si mesmo e que encontra tudo em si; por isso, é o concreto atual e universal. Ora, esse Eu, que é o próprio absoluto, é enquanto se põe; é causa sui” (Teoria generale dello spirito, XVII, § 7).

3) Já na interpretação do eu como consciência e como autoconsciência insiste-se às vezes no caráter formal do eu, ou seja, em sua unidade ou identidade. Viu-se que, para Locke, o eu é a consciência que funda a identidade pessoal, e para Kant o eu da reflexão é “a unidade da apercepção pura” (Crít. R. Pura, § 16; v. apercepção). O próprio Hume vira em certa forma de unidade, ainda que fictícia, o caráter fundamental do eu, que ele comparara a uma república em que podem ocorrer mudanças nos homens que a governam, em sua constituição e em suas leis, sem que por isso ela perca a identidade. O homem, do mesmo modo, pode mudar suas impressões e suas ideias, permanecendo o mesmo eu (Treatise, I, 4, 6). Todavia para Hume, como se vê por essa mesma imagem, a unidade não é absoluta nem rigorosa: é formal e aproximativa, fundada na constância relativa de certas relações entre as partes ou momentos do eu. Esse ponto de vista, talvez mais do que o outro que afirma a rigorosa unidade do eu, evidencia os limites e os perigos aos quais o eu está sujeito na experiência efetiva.

4) o conceito do eu como inter-relação nasce do reconhecimento do caráter mais evidente com que o eu se apresenta nessa experiência: o caráter de problematicidade, em virtude do qual ele é uma formação instável que pode estar sujeita à doença e à morte. A noção de inter-relação é, de fato, mais genérica e menos comprometedora do que a noção de unidade. A unidade é uma forma de inter-relação necessária, imutável e absoluta, uma inter-relação pode ser mais ou menos firme e romper-se. Foi sob o ângulo da “doença mortal” do eu, a desesperação, que Kierkegaard definiu o eu como “relação que se relaciona consigo mesma”. O homem é uma síntese de alma e corpo, de infinito e finito, de liberdade e necessidade, etc. Síntese é inter-relação, e a reversão dessa inter-relação, ou seja, a relação da relação consigo mesma, é o eu do homem (Die Krankheit zum Tode, 1849, cap. I). Kierkegaard acrescentava que precisamente por relacionar-se consigo mesmo, o eu é relacionar-se com outro: com o mundo, com os outros homens e com Deus. É nesta segunda inter-relação que por vezes os filósofos contemporâneos insistem. Santayana dizia: “Quando digo eu, esse termo sugere um homem, um entre os muitos que vivem em um mundo que está em conflito com o seu pensamento, mas que o domina” (Scepticism and Animal Faith, 1923, ed. 1955, p.22). De um ponto de vista diferente, Scheler chega a um conceito análogo do eu: “A palavra Eu está associada a alusão ao tu, por um lado, e a um mundo externo, por outro. Deus, p. ex., pode ser uma pessoa, mas não um eu, já que para ele não há tu nem mundo externo” (Formalismus, etc, p. 405). É precisamente da inter-relação que Heidegger lança mão para definir o eu. “A assunção ‘Eu penso alguma coisanão pode ser adequadamente determinada se o ‘alguma coisa’ ficar indeterminado. Se, porém, o ‘alguma coisa’ for entendido como ente intra-mundano, então trará em si, não expressa, a pressuposição do mundo. E é justamente esse o fenômeno que determina a constituição do ser do eu, quando pelo menos ele deve poder ser algo, como em ‘Eu penso alguma coisa’. Dizer eu refere-se ao ente que eu sou enquanto sou-no-mundo” (Sein und Zeit, § 64). De forma só aparentemente paradoxal, Sartre afirmava, num ensaio de 1937, que “o eu não está, nem formal nem materialmente, na consciência; está fora, no mundo. É um ser do mundo, assim como o eu de um outro” (Recherches Philosophiques, 1936-37; trad in., The Transcendence of the Ego, Nova York, 1958, p. 32). No mesmo sentido, afirma Merleau-Ponty: “A primeira verdade é, sem dúvida, ‘eu penso’, mas sob a condição de que com isso se entenda ‘eu sou para mim mesmo’ sendo no mundo” (Phenoménologie de la per-ception, 1945, p. 466). Considerado em sua relação com o mundo, o eu às vezes é determinado a partir do seu caráter ativo, da sua capacidade de iniciativa, do seu poder projetante ou antecipador. Dewey diz: “Dizer de modo significante ‘Eu penso, creio, desejo’, em vez de dizer somente ‘Pensa-se, crê-se, deseja-se’, significa aceitar e afirmar responsabilidades e expressar pretensões. Não significa que o eu é a origem ou o autor do pensamento ou da afirmação nem que é sua sede exclusiva. Significa que o eu, como organização concentrada de energias, identifica-se (no sentido de aceitar as consequências) com uma crença ou sentimento de origem exterior e independente” (Experience and Nature, p. 233). São exatamente esses caracteres que constituem hoje o esquema geral para o estudo experimental da personalidade, que é um dos principais objetos da psicologia. O eu só se distingue da personalidade (que é a organização dos modos como o indivíduo inteligente projeta seus comportamentos no mundo) por ser a parte da personalidade conhecida pelo indivíduo interessado e à qual, portanto, ele faz referência ao dizer “eu”. A personalidade, por outro lado, é mais vasta: inclui também as zonas escuras ou de penumbra, as esferas de ignorância mais ou menos voluntária ou involuntária, que caracterizam o projeto total das relações do indivíduo com o mundo (v. personalidade). [Abbagnano]