gr. Μοῦσα, mousa
Invocada pelo poeta no começo de um canto, a Musa deve tornar conhecidos os acontecimentos passados2: “E dizei-me agora, Musas, habitantes do Olimpo — pois sedes, vós, deusas presentes por toda parte, e conheceis tudo; não ouvimos mais do que um ruído, e nós nada sabemos — dizei-me quais eram os guias, os chefes dos Dânaos. A multidão, não poderia enumerá-la, nem denominá-la, mesmo que tivesse dez línguas, dez bocas e uma voz incansável, um coração de bronze em meu peito, a menos que as filhas de Zeus, que leva a Égide, as Musas do Olimpo, não ‘se recordem’ (mnesaiath) daqueles que chegaram a Ilion. A palavra do poeta, tal como se desenvolve na atividade poética, é solidária a duas noções complementares: a Musa e a Memória. Essas duas potências religiosas definem a configuração geral que dá à Aletheia poética sua significação real e profunda.
Qual é a significação da Musa? Qual é a função da Memória? Evidenciamos, frequentemente, a presença, no panteon grego, de divindades que têm o nome de sentimentos, de paixões, de atitudes mentais, de qualidades intelectuais etc. Mousa é uma dessas potências religiosas que ultrapassa o homem “no mesmo momento em que este sente interiormente a sua presença”. Com efeito, pela mesma razão que métis, faculdade intelectual, corresponde a Métis, esposa de Zeus, e thémis, que é uma noção social, corresponde à grande Thémis, outra esposa de Zeus, um nome comum corresponde, no plano profano, à Musa do panteon grego. Numerosos testemunhos da época clássica permitem-nos pensar que significa a palavra cantada, a palavra ritmada. O duplo valor de mousa — nome comum, potência divina — faz-se entender particularmente bem num “discurso antigo” (palaios logos), transmitido por Fílon de Alexandria: “Canta-se um velho relato, imaginado pelos sábios, e transmitido de memória, como tantos outros, de geração em geração… É assim como se segue: Quando o Criador acabou o mundo inteiro, perguntou a um dos profetas se desejaria que algo não existisse dentre todas as coisas que haviam nascido sobre a terra. Respondeu-lhe o outro que todas eram absolutamente perfeitas e completas, que faltava somente uma, a palavra laudatória (ton epaineten… logon). . . O Pai de Tudo escutou esse discurso, e, ao aprová-lo, criou imediatamente a linhagem das cantoras plenas de harmonias, nascidas de uma das potências que o rodeavam, a Virgem Memória (Mneme), que o vulgar, alterando seu nome, chama Mnemosyne8.” Entre as Musas e a “palavra cantada” — especificada aqui como “Palavra de louvor” — existe uma estreita solidariedade, que se afirma ainda mais claramente em nomes muito explícitos que possuem as filhas de Memória, pois toda uma teologia da palavra cantada se desenvolve a partir deles: Clio, por exemplo, conota a glória (chleos), a glória das grandes façanhas que o poeta transmite às gerações futuras; Tália faz alusão à festa (thallein, condição social da criação poética; Melpômene e Terpsícore despertam tanto as imagens de música quanto de dança. Outros ainda, tais como Polimínia e Calíope, exprimem a rica diversidade da palavra cantada, e a voz potente que dá vida aos poemas. As epícleses mais antigas das Musas são igualmente reveladoras: muito antes de Hesíodo, as Musas existiam em número de três. Eram veneradas em um santuário muito antigo, situado no Hélicon, e chamavam-se Meléte, Mnéme e Aoide; cada uma delas levava o nome de um aspecto essencial da função poética. Meléte designa a disciplina indispensável ao aprendizado do ofício de aedo; é a atenção, a concentração, o exercício mental. Mnéme é o nome da função psicológica que permite a recitação e a improvisação. Aoide é o produto, o canto épico, o poema acabado, termo último da Meléte e da Mnéme. Outras nomenclaturas são ainda atestadas. Cícero refere-se a uma, em que as Musas aparecem em número de quatro: Arché, Meléte, Aoide e Thelxinoé. Duas delas desenvolvem aspectos inéditos: Arché é o princípio, o original, pois a palavra do poeta busca descobrir o original, a realidade primordial. Thelxinoé é a sedução do espírito, o encantamento que a palavra cantada exerce sobre o outro. Todos os epítetos da Musa, através dos quais se desenvolve uma verdadeira teologia da palavra, testemunham, pois, a importância, nos meios de aedos e de poetas inspirados, da equivalência entre a Musa e a noção de “palavra cantada”. Marcel Detienne, Os mestres da verdade na Grécia arcaica]