Escolhemos entre muitas outras possíveis a seguinte passagem da Gaia Ciência que muito claramente parece confirmar esse tipo de interpretação: “Este é propriamente o fenomenismo e perspectivismo, tal como o entendo: a natureza da consciência animal traz consigo o fato de o mundo — aquilo de que nos podemos tornar conscientes somente ser um mundo de superfícies e de sinais, um mundo generalizado e ficcionado o fato de tudo o que é consciencializado se tornar, por isso mesmo, um sinal ou sinal identificador de rebanho, magro, relativamente idiota, o fato de toda consciencialização estar ligada a uma enorme distorção, falsificação, superficialização e generalização… Nós não possuímos absolutamente nenhum órgão para o conhecer; para a Verdade’ : ‘sabemos’ (ou cremos, ou imaginamos) precisamente tanto quanto possa ser útil ao interesse do homem-rebanho, da espécie e mesmo aquilo que designamos utilidade’ é finalmente tão-só uma crença, uma fantasia e talvez até aquela loucura fatídica que outrora nos levou ao abismo”.32
Depois de declarar o conhecimento como função da utilidade, a verdade como simplificação mediante uma qualquer semiótica, processo que leva Nietzsche a identificar a simplificação com a falsificação e o erro, eis que o próprio conceito de utilidade transforma-se em algo de imaginado, numa ficção. O que só pode significar que aquele que interpreta o conhecimento como função da utilidade está ainda a laborar num erro. Afinal, é o que já acontece com todos os epistemólogos que usam categorias (causalidade, totalidade, unidade, etc.) como autênticas categorias do ser. E no entanto é verdade que é o próprio Nietzsche que usa uma linguagem própria do pragmatismo e do utilitarismo: as semióticas humanas que visam o “real” são antes de mais nada idiossincrasias antropocêntricas, cuja origem é a utilidade para a vida. [Marques Cabral, A FILOSOFIA PERSPECTIVISTA DE NIETZSCHE]