sacralidade

Sem dúvida, a ênfase cristã na sacralidade da vida faz parte da herança hebraica, que já apresentava um notável contraste com as atitudes da Antiguidade: o desprezo pagão pelos tormentos impostos pela vida ao homem no trabalho e no parto, a figuração invejosa da “vida fácil” dos deuses, o costume de enjeitar os filhos indesejados, a convicção de que a vida sem saúde não vale a pena ser vivida (de sorte que se considerava, por exemplo, que o médico desvirtuava a sua vocação ao prolongar a vida quando era impossível para ele restaurar a saúde), [Cf. Platão, República, 405C] e de que o suicídio é o gesto nobre de desvencilhar-se de uma vida que se tornou opressiva. Contudo, basta lembrar a forma como o Decálogo menciona o homicídio, sem lhe atribuir gravidade especial em meio a um rol de outras transgressões – as quais, em nosso modo de pensar, mal se podem comparar a esse crime supremo –, para que se compreenda que nem mesmo o código legal hebraico, embora muito mais próximo do nosso que qualquer escala pagã de ofensas, fazia da preservação da vida a pedra angular do sistema legal do povo judeu. Essa posição intermediária do código legal hebraico – situado entre a Antiguidade pagã e todos os sistemas legais cristãos e pós-cristãos – talvez tenha sua explicação no credo hebraico, cuja ênfase recai sobre a imortalidade potencial do povo, em contraposição à imortalidade pagã do mundo e à imortalidade cristã da vida individual. De qualquer forma, essa imortalidade cristã atribuída à pessoa que, em sua unicidade, começa a vida na Terra através do nascimento, resultou não somente no mais óbvio aumento da além-mundanidade, mas também em um enorme aumento da importância da vida na Terra. O que importa é que o cristianismo – com a exceção de especulações heréticas e gnósticas – sempre insistiu em que a vida, embora não tivesse mais um fim definitivo, tinha ainda um começo definido. A vida na Terra pode ser apenas o primeiro e mais miserável estágio da vida eterna; ainda assim, é a vida e, sem essa vida que termina com a morte, não pode haver vida eterna. Talvez resida aí o motivo para o fato indubitável de que, somente quando a imortalidade da vida individual passou a ser o credo central da humanidade ocidental, isto é, somente com o surgimento do cristianismo, a vida na Terra passou também a ser o bem supremo do homem.

A ênfase cristã na sacralidade da vida tendeu a nivelar as antigas distinções e articulações no interior da vita activa; tendeu a ver o trabalho, a obra e a ação como igualmente sujeitos à necessidade da vida presente. Ao mesmo tempo, contribuiu para liberar um pouco a atividade do trabalho, isto é, tudo quanto é necessário para manter o próprio processo biológico, do desprezo que a Antiguidade nutria por ela. O antigo desprezo pelo escravo, menosprezado porque servia apenas às necessidades da vida e se submetia ao domínio do amo por desejar permanecer vivo a qualquer preço, não podia de modo algum sobreviver na era cristã. Já não era possível menosprezar o escravo, como Platão o fazia, por não haver cometido suicídio ao invés de submeter-se, pois permanecer vivo em quaisquer circunstâncias passara a ser um dever sagrado, e o suicídio era visto como pior que o homicídio. O enterro cristão era negado não ao assassino, mas àquele que havia posto fim à sua própria vida. [ArendtCH:C44]