Encontramos esse entusiasmo desmedido pela atividade técnico-científica e pelas possibilidades que através delas se oferecem na utopia de Francis Bacon: A Nova Atlântida. Já citamos no início um trecho desse relatório de proezas mecânicas, tidas por Bacon como o maior título de glória da humanidade. O conhecimento científico, na Nova Atlântida, é propriedade de um grupo hermético e maçônico, que constitui a assim chamada Casa de Salomão. O personagem imaginário que visita as terras da Nova Atlântida e que, depois de uma série de vicissitudes de menor importância, é introduzido junto aos iniciados dessa fundação, transpõe os umbrais da Casa de Salomão com um terror quase religioso. É como se o pressentimento do mundo que estava por vir se apresentasse repentinamente à sua consciência. Revelando os mistérios da Casa de Salomão, assim se manifesta o Grã-Sacerdote que recebe o visitante de outras terras: “Deus te bendiga, meu filho: vou dar-te a mais preciosa joia que possuo, pois, pelo amor de Deus e dos homens, vou revelar-te os segredos da Casa de Salomão. E para dar-te a conhecer, filho, a grande onipotência desta nossa Casa de Salomão, seguirei essa ordem: primeiro, dar-te-ei conta do objeto de nossa fundação. Segundo, das preparações e instrumentos que temos para o nosso trabalho. Terceiro, dos vários empregos e funções a que nossos companheiros estão destinados. E quarto, das ordenanças e ritos que observamos. O objeto de nossa fundação é o conhecimento das causas e secretas noções das coisas e engrandecimento dos limites da mente humana, para a realização de todas as coisas [206] possíveis”. Dentro da concepção naturalista de Bacon, o conhecimento legítimo é o conhecimento da natureza, dos fenômenos perceptíveis através dos sentidos e de suas leis. É por meio desse conhecimento que nos libertamos dos idola e preconceitos que entorpecem o nosso saber utilitarista. Ao lado disso, continua sem dúvida a existir o mundo das coisas divinas, mas totalmente separado das oportunidades terrestres, segundo a dicotomia que se tornou clássica na filosofia inglesa entre a crença (believe) e o saber positivo (utility). Na Nova Atlântida, estátuas são erguidas aos inventores de aparatos mecânicos e técnicos, e prêmios são distribuídos aos que se distinguem pelo bem prestado à causa da civilização material.
Há um paralelo muito interessante entre os segredos próprios da Casa de Salomão e a situação a que chegamos no que diz respeito ao caráter esotérico e sigiloso da pesquisa científica contemporânea. Assim é que diz ainda o Grão-Sacerdote baconiano: “E outra coisa que também fazemos é celebrar consultas sobre que inventos e experimentos, descobertos por nós, devem fazer-se públicos e quais não, jurando todos guardar segredo sobre aqueles que pensamos conveniente ocultar, ainda que alguns destes, às vezes, são revelados ao Estado”.
Bacon, entretanto, não teve consciência de que no Estado orientado pela Casa de Salomão não haveria lugar para uma harmonia entre a ordem positiva da utility e a ordem divina da adoração e do culto religioso. Como bem observou Benedetto Croce, existe um imperialismo das atividades culturais, tendendo a parte sempre a devorar o todo. Isso foi justamente o que aconteceu no mundo ocidental, logo após a eclosão da revolução industrial. O ideal humanístico-burguês que permeava a mentalidade desses utopistas tinha em si ingredientes contraditórios, como a própria época em que viviam. Bacon, em especial, com sua doutrina filosófico-política, acreditava na possibilidade de uma subordinação do conhecimento natural às finalidades de uma civilização humanística, sem o mínimo pressentimento do demonismo ínsito em tal processo. Entretanto, encontramos no [207] próprio Renascimento a consciência definida e profética dos desenvolvimentos últimos e abismais do mundo separado de Deus e entregue à sua própria propulsividade, na obra artística de Jeronimus Bosch. A babel das cidades cosmopolitas, a despersonalização e massificação do homem, as perversões morais e sexuais, o aspecto monstruoso e apocalíptico das guerras modernas, tudo isso vemos aflorar nas telas de Bosch, numa antevisão prefiguradora. A ciência naturalística e instrumental, com o seu ser para si fechado e autônomo, devia constituir o homem numa cidadela também fechada e autônoma, com todas as suas consequências metafísicas e religiosas. Ninguém nega, hoje em dia, que a força determinante de nossa cultura é o processo de domínio da natureza e a força econômica dos organismos sociais. Todos os outros aspectos da cultura são meramente adjetivos e aleatórios, simples epifenômenos das relações econômico-materiais. A virtu dos doutrinadores do humanismo, a categoria moral do honnête homme dos iluministas, se transmudaram no código elástico do homem eficiente de nossos dias, cujo mérito social é aquilatado em função de suas possibilidades econômicas. Se a civilização moderna, que teve início justamente com esses apóstolos do conhecimento científico e do credo racionalista, nos libertou dos múltiplos jugos da necessidade natural do homem, isto é, das doenças, das distâncias, do desconforto, por outro lado nos alienou e nos jungiu ao processo da civilização mecânica, e ao arbítrio cego das lutas de poder. A “liberdade de” não se transformou numa “liberdade para”. A transcendência dos limites e confinamentos da necessidade natural decaiu numa transcendência, ou melhor, numa nova barbárie crepuscular e desalentadora. É estranho o contraste entre o otimismo de certos homens imersos no fragor da civilização atual e a consciência temerosa e pessimista dos maiores vultos deste século. Quem estará com a razão? Os que confundem a sua mesquinha prosperidade pessoal com o bem do mundo, ou os que se elevando acima de suas vantagens ou desvantagens pessoais contemplam o todo histórico em suas perspectivas acabrunhadoras? Entretanto, como vimos, esses primeiros sonhadores da idade moderna não [208] captaram esse aspecto negativo da ordem das coisas. Devemos, porém, abrir uma exceção ao filósofo italiano Giambattista Vico, que no início da era moderna prognosticou a inevitável barbarização das nações, como consequência do desenvolvimento das artes e letras humanas. Os utopistas, pelo contrário, levados pelas esperanças da cultura renascentista prognosticaram uma seara auspiciosa para a sociedade humana, guiada pela luz do conhecimento e da filosofia. Um exemplo desta irrestrita confiança, encontramo-lo no filósofo italiano Tomaso Campanella, cuja utopia denominada Heliópolis ou a imaginária Cidade do Sol passaremos a examinar. [VFSTM:206-209]