caminho

O fim dá conta da desmedida preciosidade da vida humana, quando ela é excedente; quando o homem não se detém no caminho; quando, ainda «cheio de si», não se demora olhando deslumbrado o aonde chegou, e, sobretudo, quando, saudoso, não [65] tenta retroceder ao Exílio donde partiu. O caminho percorre-se por nostalgia, em cada um dos que nele se enviaram; é, para cada um, odisseia. Na grande viagem não faltam, como a Ulisses não faltaram, motivos dissuasórios, motivos para se deixar iludir, motivos para supor que, em algum dos mundos do Meio, pudesse habitar sem arrependimento nem remorso. Sobram encantos que sobrepujam horrores, atrativos que na sombra deixam os repulsivos. Os companheiros ficaram para trás, e Ulisses arribou à Ítaca. O nosso caminho tem início no Mundo dos Homens, passa por não sei quantos mundos dos deuses, termina fora de todos os mundos, de homens e de deuses. Mas a iniciação é iterativa. Não por uma vez me terem iniciado, percorro todo o caminho. O Caminho tem muitas estações e iniciado tenho de ser de novo, ao passar de uma para outra. E cada início é diferente do outro. Talvez não haja graduação. Metamorfose, somente; metamorfose de mim e do mundo. Assumo, de cada vez, a forma que um deus imprimiu no mundo e no homem, no mundo que é deste homem e no homem que é deste mundo. Não há graduação; só o experimentar-se como ser proteico como o que pode ser o mesmo e o outro. Se há graduação, é só a que vai do envolvido ao desenvolvido, do encoberto ao desencoberto, na medida em que, atrás de cada porta de mundo, deixo uma das vestimentas do «mim mesmo». Não há graduação para o «eu» que sob «mim» se oculta. E no fim, que vejo eu? Que, sem sabê-lo, lá estava desde que me pusera a caminho. Lá estão todos os que no caminho me enviaram, mas não o sabem sem ter chegado ao fim. A iniciação está terminada desde o início da excedência incontida, e as estações ultrapassadas só a confirmam, enquanto firmam a incontinência do excesso. O Mundo excede-se em mundos, e os mundos, no que já não é mundo — só a Excessividade Caótica, grande maré que sobe rumorejante do fundo do Abismo sem fundo, a que se entrevê na passagem de mundo para mundo, quando perigosamente se vive os momentos em que já não se vive em um, mas ainda não se vive em outro, quando suspensos nos encontramos no entremundos. [EudoroMito:65-66]