Através do mito, como relato específico, dentro do gênero narrativo, nada feito! Todos os antropólogos e historiadores se concertam na verificação de que mitos se contam e contaram, se escrevem e se escreveram, que nenhuma relação deixa entrever com drama ritual conhecido. Tal como não faltam exemplos de dramas rituais sem vestígio de mito com algum deles relacionável. É notável que ninguém queira levar em conta a extrema lacunaridade da tradição escrita. Levamo-la nós. Por isso, ainda e sempre, repetimos, com inabalável certeza, que a ausência de provas não prova a ausência do mais provável. Mesmo assim, desistimos de prosseguir por caminho que aparentemente não nos conduz a nenhum lugar em que alguém se disponha a reconhecer, sem provas, que a situação verificada hoje pode não ser a de ontem, e que resultasse de outra muito diversa — a da originalidade de uma íntima conexão do mito e do rito, do rito com o mito. Não importa; pois também não parece que haja mito relatado, descrevendo o ritual da nossa vida quotidiana. Não parece, mas há. O ritual pode existir sem mito, mas não sem o impulso mítico, criador de mitos; e, de facto, um deles, o mais eloquente de todos eles, está aí, bem diante de nossos olhos: «Deus morreu.» Leiam-no em Nietzsche e Dostoiewski. Curioso, excitante e, sobretudo, incitante é pensar que o mesmo impulso mítico persista desde o mais longínquo Outrora do pré-cerâmico de Hacilar e do protocerâmico de Çatal Huyuk, através de todos os séculos da Antiguidade, em que se celebraram cultos «mistéricos», e de todos os da quase bimilenária história da Cristandade, em que dia a dia o Cristo morre para dar vida a um mundo — mundo que não deixa de ser mundo, por sobrenatural que se diga — até ao mais próximo Agora, quando o mesmo impulso leva alguns de nós a proclamar a morte do próprio Deus e a propor a exigência de haurir em nós mesmos resignação para suportar o luto da orfandade, vivendo no mundo por Ele criado. Outrora, a morte de um entre os demais deuses, agora, a morte do Deus que de todos os deuses se aparta — eis o grande mito, talvez o único mito: por sua morte, os deuses se tornaram nos mundos em que outros homens viveram; por sua morte, Deus se torna no Mundo em que vivemos nós. Mais uma vez se nos defronta a cosmofania como teocriptia, e a teocriptia com Deicídio. O mito é este, e só este — só o genesíaco e escatológico, o que nos põe diante do Princípio e do Fim, mas do Fim que se religa ao Princípio — o mito da Origem, em suma. [EudoroMito:49-50]