A análise platônica do fenômeno da imitação reprodutora (μίμησις [mimesis]) aponta para o fato absolutamente espantoso de a sua ação não se circunscrever só aos mais diversos campos da reprodução artística, mas extravasar para fora do domínio da realidade no seu todo. Ou seja, a atividade artística de um pintor exacerba esta nossa instalação do olhar. Ao retratar as diversas aparições nas quais uma determinada coisa nos surge, um pintor não faz mais do [63] que reproduzir o que já na óptica natural acontece. Também nós só vemos aparições de coisas, embora achemos que estamos habitualmente confrontados com a própria coisa em si mesma. O que passa, então, a declarar-se pela análise do fenômeno da imitação reprodutora (μίμησις) é que o seu campo de ação não é o âmbito restrito da atividade artística mas que é o fato de a nossa vida assentar sobre uma perspectiva de imitação (μίμησις). A partir do confronto com esta descoberta percebemos que não produzimos qualquer acompanhamento do sentido da natureza essencial (φύσις [physis]) de cada coisa [Ao fazê-lo, nós estamos a partir de uma função anamnésica que nos depõe ante o verdadeiro modo de produzir um acompanhamento daquilo mesmo que são as coisas. Cf. Menon, 81c-82c, e Fédon, 72e-76c. C. Janawy, Images of Excellence, Plato’s critique of the Arts, Clarendon Press Oxford, 1995: Mimese enquanto τέχνη ποιητική (pp. 36-58).].
A análise inicial do fenômeno da reprodução (μίμησις) é feita a partir da tematização da essência de cada coisa na sua individualidade [República, 596a6], da natureza essencial (φύσις) de cada coisa, mas circunscrita ao âmbito daquilo a que modernamente chamamos a realidade externa e objetiva. O horizonte tematizado deixara fora de jogo a procura do modo como cada coisa em geral e o humano em particular podem ser «excelentes». A pergunta sobre um tal sentido ultrapassa os requisitos mínimos indispensáveis à identificação da natureza de qualquer coisa e tem de ter em vista os limites organização-ordenação (τάξις-κόσμος [taxis–kosmos]) versus desorganização-desordenação (ἀταξία-ἀκοσμία [ataxia-akosmia]) dos quais depende o apuramento da excelência (ἀρετή [arete]) ou da perversão (κακία [kakia]) de um determinado ente.
Se já no nível elementar da pergunta pela natureza essencial (φύσις) dos entes há uma enorme dificuldade em anular a dependência da nossa perspectiva de um fenômeno de reprodução (μίμησις), muito mais difícil é responder à pergunta sobre sentido da excelência (ἀρετή) [O que está em causa na pergunta pela arete das coisas não se limita de modo nenhum ao «herkunftsmässige Hineingeformtsein» em que cada coisa nos surge, tanto os entes vivos como os organismos em geral, ou os artefactos de toda a espécie. Tudo isto «wird ais eine Beschränkung empfunden, die durch menschliches Streben, durch Philosophieren gebildet werden kann» (cf. D. Mannsperger, Physis bei Platon, p. 131).], uma vez que o horizonte em que ela se configura é definido a partir de limites completamente diferentes. O horizonte em que se pode perguntar pela excelência (ἀρετή) humana é o da situação em que o humano existe no seu modo de ser (πρᾶξις [praxis]) [É no horizonte da πρᾶξις que se pergunta pelas possibilidades e potenciais máximos do humano para além da condição necessária de estar em vida.]. [64] A possibilidade de análise deste horizonte depende da tematização de uma estrutura fenomênica diferente daquela que está presente na análise das coisas do mundo natural. [CaeiroArete:63-64]