milesianos

Essa grande aventura intelectual não começa na Grécia continental; do período que estudamos, quase todos os nomes ilustres podem ser localizados na Jônia (metade sul da costa ocidental da Ásia Menor) e na “Grande Grécia” (sul da península italiana e Sicília). A Jônia foi a primeira região de civilização helênica (ao mesmo tempo que a primeira região do mundo ocidental) a se desprender plenamente do imobilismo e das opressoras tradições que definem a organização dos modos de vida predominantemente camponesa onde reinam aristocracias fundiárias. Uma certa civilização urbana já se tinha afirmado em muitos lugares, com um artesanato desenvolvido e trocas comerciais a longa distância por via marítima (notadamente em Creta, desde os fins do século III a. C.).

Mas as condições de um pensamento livre e bem individualizado parecem ter sido reunidas, pela primeira vez, apenas um pouco mais tarde, na opulência industrial e comercial da Jônia dos séculos VI e VII a.C; não é certamente por acaso que a mais florescente das cidades da Jônia, a mais laboriosa em toda a bacia do Mediterrâneo oriental e dos países limítrofes, a mais variegada, na encruzilhada de um sem-número de ricas influências culturais, Mileto, velha colônia cretense por sua vez fundadora de numerosos entrepostos comerciais, tenha sido a pátria dos três primeiros pensadores que importam nesta história, Tales, Anaximandro e Anaxímenes. Nenhuma cidade da bacia mediterrânea podia conhecer problemas mais novos, impossíveis de se resolver nos limites das tradições abaladas e ter ao mesmo tempo e no mesmo grau o ócio para encará-los com um otimismo profano. A atitude comum aos três mi-lesianos, mais importante a definir que a divisão de seus atributos respectivos, revela, como indicamos acima, uma reação francamente desfavorável aos hábitos do pensamento mítico. A unidade primordial de onde provêm os seres da natureza, em sua rica diversidade, estava já presente nas cosmogonias míticas. Ela se afirma agora num monismo ao qual deseja oferecer antes uma base permanente e uma força imanente de geração que um ponto de partida para uma genealogia, a fim de superar as ambiguidades do mito, sempre pronto, quanto a ele, a duplicar, depois de tê-los por um tempo humanizado, os seres da natureza e sua própria origem por outras tantas imagens antropomórficas. A narração ritual e anônima que cantava obscuramente as famílias de deuses e de reis divinos comandando a ordenação do mundo cede francamente lugar a um tipo de explicação prosaica e mais pessoal, ainda grandemente influenciada pelos temas míticos, mas orientada essencialmente por forças ou propriedades naturais e precisas, purificadas de todo antropomorfismo, localizáveis sem mistério no sensível e idênticas, fora do alcance dos homens, ao que são no funcionamento das técnicas.

Tales, essa etiqueta de um teorema, já era mal conhecido do jônio Heródoto; Aristóteles fala dele apenas por ouvir dizer. Nãorazão para se duvidar de sua existência histórica nem de que tenha pertencido ao helenismo. Mas as maiores incertezas cercam sua figura lendária: provavelmente nada escreveu e muito rapidamente tornou-se o próprio símbolo da sabedoria erudita e da filosofia, traços que fazem pensar, antecipadamente, no personagem, sob tantos pontos de vista diferente, de Sócrates. É, em todo o caso, o primeiro em data dos physiologoi, dos que estudam livremente a natureza das. coisas. Teria predito o eclipse total do Sol, que sobreveio, dizem, em pleno desenrolar de uma batalha entre lídios e medas, o que permite reter como mais provável a data de 585 a.C. Situa-se, de maneira mais arriscada,, os limites de sua vida em torno dos anos 625 e 545 a.C. Seus conhecimentos astronômicos foram provavelmente superestimados. Em geometria algumas proposições elementares lhe são atribuídas, aperfeiçoamentos possíveis,, sobretudo sob forma de generalizações, de fórmulas originárias do Egito (país que talvez tenha visitado). Isto não quer dizer que seus interesses de ordem prática não se tenham harmonizado com uma curiosidade especulativa; não pensamos que se desacreditem mutuamente de maneira absoluta as anedotas que fazem dele ora um espírito especulativo (Platão refere que Tales, ao olhar para cima, a fim de observar os astros, caíra dentro de um poço), ora um “especulador” (ele teria alugado,, fora da estação e a preços baixos, todos os lagares de Mileto e Quios prevendo uma colheita abundante de azeitonas), pois a operação financeira repousa aqui sobre um saber superior, autorizando uma previsão inacessível à concorrência. É apresentado ainda como um técnico praticando a medida indireta (no momento em que a sombra de um homem é igual à sua estatura, a sombra de uma pirâmide é igual à sua altura), como um engenheiro militar organizando o desvio de um curso d’água, um conselheiro militar desejando, contra a ameaça dos persas, uma federação da Jônia. Mas, sobretudo, se ele parece se orientar facilmente para aplicações utilitárias,, o espírito de livre observação em Tales não se harmoniza menos com a audácia de uma concepção de conjunto da natureza. É o primeiro a imaginar uma realidade sensível, a água, como o substrato e a força geradora de todas as coisas. Justifica essa visão poderosamente sintetizadora pela observação, certamente insistindo sobre o papel da água na vida das plantas e dos animais e sobre a importância fundamental dos rios nas civilizações que conhecia. A água é vida e princípio de vida, todas as coisas dela provêm e a ela voltam, de sorte que tudo é vivo, em transformação e movimento perpétuos, tudo é “animado” e, nesse sentido, dotado de alma. Certamente essa concepção retoma de perto certos conteúdos dos mitos do Oriente Próximo e do Egito, mas sua intenção é nova: nada mais natural, podemos dizer, que Tales se representasse a Terra boiando sobre uma massa de água e daí tirasse uma explicação dos tremores de terra, fenômenos esses, contudo, bem próprios para suscitar as práticas e as imagens de uma mágico-religiosa. Por isso cremos que dizendo que tudo é pleno de divindades e que o mundo é divino em seu conjunto, Tales quis muito mais afirmar a autonomia e a homogeneidade do mundo, contra todas as formas de separação que implica a ordem do sagrado, do que manter um tema mítico e teológico.

Cerca de quinze anos mais moço, morto mais ou menos na mesma época, Anaximandro aprofunda e torna também mais nuançadas as concepções naturalistas de Tales. A nitidez de suas divergências é suficiente para mostrar em que espírito de liberdade se forjam essas novas concepções. Preocupado, como Tales, pelo problema da origem única de todas as coisas, Anaximandro recusa reconhecer essa origem num elemento observável; peio fato, precisamente, que observamos múltiplas realidades determinadas, água, fogo etc, pares de opostos que se entredevoram e só se engendram mutuamente no seu conflito permanente, nenhuma pode ser privilegiada como arché, como origem dinâmica e substancial. O princípio deve estar aquém de toda realidade observável e limitada: será chamado, pois, o indeterminado, to apeiron. Infinito na duração, “imortal e imperecível”, em movimento perpétuo, sem ser, provavelmente, infinitamente criador, nem infinito no espaço (isto suporia um conceito de espaço ainda a formar), é uma espécie de enorme massa matriz que engendra em si o mundo (cosmos) e o guia como um “piloto”, governando-o divinamente. O cosmos se forma nessa massa por uma ação como que biológica de diferenciação: os opostos se distinguem em espécie e se dispõem em regiões definidas (em primeiro lugar o quente na periferia e o frio no centro) e começam a reagir uns sobre os outros, donde resultam a diferenciação e a disposição dos círculos do céu, tendo ao meio, como uma espécie de cilindro, a Terra (que já não carece, como em Tales, de suporte). A vida animal se diferencia em seguida do barro sob a ação da evaporação do Sol. Anaximandro parece ter tido a ideia de uma evolução das espécies, de uma conquista da terra firme por seres vivos, originários de lugares úmidos ou aquáticos, enfim, de uma origem animal do homem, concepções estas que podemos admirar sem que nos consideremos obrigados a aproximá-las das problemáticas modernas com as quais têm apenas relações demasiado vagas. A ordem do mundo, uma vez constituída, se mantém através de compensações cíclicas entre os opostos (o ritmo das estações notadamente) até a reabsorção no indeterminado. Em seguida recomeçará a gênese de um cosmos. Há, pois, uma infinidade de mundos sucessivos. Mas verossimilmente um único de cada vez, a questão de uma pluralidade de mundos simultâneos permanecendo muito discutida. Seja como for, as concepções de Anaximandro parecem ser, em parte talvez por estarmos menos pobremente informados sobre ele do que sobre Tales, de uma grande riqueza e de uma grande precisão, muito insuficientemente restituídas acima (seria preciso mostrá-lo como viajante, inventor do mapa geográfico, astrônomo ou meteorologista). Encontramos nele as qualidades de observador e a audácia especulativa de Tales, do qual ele toma também, para reforçar suas exigências, o sentido da argumentação. Parece que ele fez de fato progredir a justificação lógica das teses defendidas e, ao mesmo tempo, que promoveu um certo retorno não apenas a conteúdos, mas também ao próprio espírito das cosmogonias míticas. O apeiron, oculto e parcialmente personificado, assemelha-se muito ao Caos do mito, a ordem do cosmos transpõe práticas de reparação instituídas pela justiça dos seres humanos e sua “pilotagem” evoca até mesmo nos termos o papel tradicional das divindades míticas. A oposição do apeiron, organizador imortal, e do cosmos, criação ou emanação perecível, restaura senão uma separação pelo menos uma hierarquia que repercute, parece, nas relações dos elementos opostos e mais geralmente no estatuto das realidades interiores ao cosmos. Não obstante, a orientação naturalista persiste, uma vez que Anaximandronão atribui nenhum lugar às divindades do mito e busca continuamente humanizar seu apeiron, a fim de explicar a ordem do mundo. Tudo se passa como se nele o próprio esforço de clarificação e o progresso do raciocínio fosse o que provoca um retrocesso: muitas vezes, para começar, só uma retomada mitigada das tradições é capaz de dar — como vemos confirmado por muitos outros exemplos na história do pensamento — uma resposta às questões novas.

Esta observação ajuda a compreender a posição do terceiro dos grandes mestres milesianos, Anaxímenes, discípulo livre de Anaximandro, mais ou menos 25 anos mais jovem que este e morto por volta de 525 a.C. Recusando qualquer esquema simplista, permanece o fato que seu pensamento se revela a nós como um aprofundamento sintético do de seus predecessores. De fato, ele leva em conta as razões pelas quais Anaximandro recusava a solução de Tales e admite, também ele, que a origem de todas as coisas é indeterminada. Recusando, porém, fazer dela uma realidade oculta, volta à inspiração de Tales, localizando-a na experiência. O espírito positivo e naturalista que se desviava em Anaximandro retoma pois em Anaxímenes toda sua retidão (aliás, ele passava por haver escrito em prosa simples e despojada, enquanto Anaximandro, que já tinha composto uma obra, conservava em sua prosa o estilo poético dos mitos). Anaxímenes deve pois mostrar que existe, como origem de tudo, uma realidade, submetida ao julgamento da experiência, ainda que num sentido indeterminado. Este princípio será o ar, elemento invisível e imponderável, quase inobservável e, no entanto, observável: o ar é a própria vida, a força vital, a divindade que “anima” o mundo, aquilo de que dá testemunho à respiração (o sopro da respiração é a vida e, em consequência, todo sopro e toda vida são identificados numa imaginação imemorial). O ar é indeterminado, não no sentido obscuro de Anaximandro, mas como elemento universal, que tendo seu caráter próprio, vai além de qualquer determinação particular e permanece por si próprio sem forma e delimitação.

Anaxímenes explica todas as realidades particulares do cosmos substituindo as manifestações misteriosas das qualidades sensíveis fora do apeiron por processos de condensação ou de rarefação, de contração ou de relaxamento do elemento original (a rarefação do ar produz o calor, a condensação o frio; uma condensação cada vez mais forte produz sucessivamente vento, nuvem, chuva, terra, rocha). Esta concepção tende a uma espécie de clareza redutora onde (em linguagem demasiado moderna) haveria diferenças apenas de grau ou de quantidade (de mais ou de menos num mesmo volume). Esta cosmologia parece menos rica que a de Anaximandro. Isto se passa certamente pelo fato de o espíritopositivo” manter a imaginação nos limites da experiência familiar; produto de uma condensação primordial, a Terra é uma espécie de mesa bem plana que repousa sobre o ar e o resto do cosmos é tirado de sua substância por rarefação; a Lua e o Sol são discos análogos a “quadros pintados”, as estrelas “pregos” cravados na esfera celeste (que já não passa sob a terra como nos mitos egípcios e em Anaximandro). Nascido do ar, o cosmos vive desse modo ao ritmo de uma respiração gigante esperando ser reabsorvido no ar, da mesma maneira que, por um tempo, o sopro que constitui nossa alma nos “anima”, nos dá o movimento da vida, caráter eterno do ar. Em resumo, o mais notável em Anaxímenes é que tenha conseguido conciliar o raciocínio de Anaximandro à experiência sensível, contra a tentação, quase insuperável, em todo o curso do pensamento antigo, de realizar, fora e além do mundo da experiência, as abstrações com que se reforçara cada vez mais o livre pensamento inaugurado pelos milesianos.

A expansão do Império Persa resultou em 494 a.C. na destruição de Mileto, prelúdio das guerras médicas, sem por isso matar o espírito milesiano. Mas os pensadores que, em outras cidades jônicas, herdaram, tanto antes como depois dessa data, a liberdade de espírito e o gosto da especulação devidos aos milesianos, orientaram-se frequentemente de maneira diferente. Se as fantasias da religião homérica não satisfazem nem a Pitágoras, nem sobretudo a Xenófanes, se um e outro são fortemente influenciados pela cosmologia milesiana, a observação da natureza e as explicações naturalistas já não retêm, em primeiro lugar, esses espíritos animados de uma religiosidade patente. [J. Bernhardt]