“Ideologia” significa: a estruturação do que existe na aparência. O objeto, como pura aparência, é o que nos “une” ao sistema ideológico fundamentador do quotidiano. Um detalhamento da constituição do sistema de objetos do quotidiano pode ser visto no artigo já citado; passemos, no entanto, por cima desta análise e consideremos rapidamente a questão da historicidade do sistema de objetos. Conforme foi visto (em lógica e linguagem), a noção de “sentido” equivale à noção de “comunicação”, desde que o sentido só é revelável através da linguagem. A ideologia é uma certa exterioridade que “herdamos”, e cujo sentido nos é dado através da linguagem. A linguagem nos abre a experiência do histórico, da coisa-feita-por-outros-que-não-eu. Com maior detalhe: uma teoria da história pretende “reconstruir” o passado, para compará-lo ao presente e desenvolver análises em consequência. “Reconstruir” o passado significa reconstruir o mundo dentro do qual viviam os homens “daquele tempo”. É preciso, portanto, encontrar um “sentido comum” entre o tempo passado e nosso tempo. Este sentido comum existe dentro da linguagem, que compartilhamos com o passado enquanto homens. Parte de nossa “herança” do passado será o sistema ideológico dentro do qual vivemos. E que se manifesta em nosso quotidiano através dos objetos.
De que maneira é esta manifestação do ideológico em nosso mundo? Morre o marido de minha tia, que foi pessoa de certa projeção. Ela proíbe que toquem ou mexam nos seus papéis e livros; “fica tudo como ele deixou”. Com este gesto, minha tia pretende sustentar a “lembrança” dos “tempos felizes” de seu casamento. Mas por que foi feliz o casamento de minha tia? Porque, ao lado de meu tio, ela “foi pessoa de projeção; “conservou o nível de seu nascimento” e transmitiu este nível “através de educação adequada” a seus filhos. O escritório que agora ela pretende conservar intacto é a presença concreta, intramundana, da ideologia que deu e dá sentido à sua vida. Destruí-lo significa destruir este sentido. A “exterioridade” da ideologia está, portanto, relacionada à sua historicidade: se pergunto pelo motivo da devoção que minha tia mantém pelo marido morto, ela me respondera — indiretamente revelando o fundamento historial de seu gesto — “porque é assim que sempre foi, e assim que deve ser”. Outros problemas. Analíticas do objeto podem servir para o desenvolvimento de uma ontologia para a psicanálise (como está implícito nas presentes considerações), mas também podem fundamentar uma epistemologia. Uma “ciência natural” teria seu início no gesto apofântico que destrói a utilidade de um instrumento, e o revela como coisa, como ente, como “matéria” ou “forma”. No entanto, ainda é cedo para expormos aqui as ideias a respeito. Basta que se assinale que, nesta epistemologia, as “ciências humanas” são teorias do objeto, isto é, descrições de ontologias regionais do sistema ideológico, enquanto as “ciências naturais” são teorias da coisa. (Francisco Doria – DCC)