Locke

LOCKE (John), filósofo inglês (Wrington, Somersetshire, 1632 — Oates, Essex, 1704). Filho de um jurista, fez seus estudos secundários em Londres, em Westminster, entrando mais tarde para a universidade de Oxford. Sua preocupação com a realidade levou-o a ocupar-se de física, química, medicina e política. Sua teoria sobre a origem do conhecimento (Ensaio sobre o entendimento humano, 1690) é um sensualismo segundo o qual todos os nossos conhecimentos e os próprios princípios de nosso espírito resultam da experiência e do hábito; sua filosofia do direito é, contra Hobbes, uma justificação de tolerância (Cartas sobre a tolerância, 1689), Os Tratados do governo civil (1690) expõem a teoria da sociedade liberal. Deve-se-lhe também um tratado sobre A educação (1693), onde apresenta o cristianismo primitivo como a religião natural do coração do homem. [Larousse]


John Locke (1632-1704) em sua obra “Um ensaio sobre o entendimento humano”, declara, no prefácio, que pretende examinar a natureza e os limites do entendimento humano. Locke opõe-se à aceitação das ideias inatas. Ele repele o inatismo, e afirma que todas as ideias do homem são adquiridas através de um processo psicológico. Assim, para ele, a alma é uma tabula rasa, uma folha não escrita, na qual a experiência grava as suas impressões. Dessas impressões é que nascem as ideias, que, para Locke, são apenas representações gerais da consciência. A experiência pode ser externa ou interna. No primeiro caso, a aquisição da ideia é feita através da sensação; no segundo, pelo reflexo do espírito, a qual exige atenção. As representações não são imagens fiéis do objeto percebido. Nas representações, concorrem as qualidades chamadas primárias, que são as correspondentes às relações de extensão, figura, movimento, número, etc, que são adequadas ao objeto externo e que, por isso, podem ser qualificadas de verdadeiras. As qualidades secundárias, tais çpmo a côr, o sabor, o som, etc, são meros produtos da representação interna. São as qualidades primárias, como elemento objetivo, a base de todas as leis físicas e mecânicas. [MFS]


Já tivemos oportunidade de entrever, através dos Novos ensaios de Leibnitz, a significação do Ensaio sobre o entendimento humano, de Locke, e as perspectivas que ele abria. Locke era o mais estimável dos homens, um perfeito gentleman, amigo certo e prestativo, sem nenhum pedantismo na sua instrução e na sua cultura. Nascido em 1632, morria em 1704 da maneira mais edificante e corajosa, após uma vida de constantes enfermidades. Mostrara certa inclinação para a carreira eclesiástica, voltando-se depois para a diplomacia e ligando-se a Lord Ashley, mais tarde Conde de Shaftesbury, por quem foi introduzido na corte de Guilherme de Orange.

Este homem de projeção era um espírito perfeitamente moderno, muito desconfiado no tocante às sutilezas da escolástica, pelas quais tivera de passar, e voltado para todas as formas do real. Concebeu pelas ciências uma paixão que o levou a estudá-las nos mínimos pormenores e vemo-lo, bem jovem ainda, encher diariamente cadernos de observações meteorológicas. Mas soube também estender a sua reflexão à existência corrente e social e não foi absolutamente um sábio de gabinete; nas viagens que fez a Paris frequentou a elite intelectual; em sua pátria acompanhou os negócios públicos com atenção e sagacidade, mas sempre cheio de urbanidade. Na juventude escrevera umas Reflexões sobre a República Romana em que prefigurava Montesquieu, falando já da “grandeza” dos romanos e da sua “decadência”; foi somente por volta dos cinquenta anos que publicou os Dois tratados sobre o governo civil: mas Locke permanece acima de tudo o autor do Ensaio filosófico sabre o entendimento humano, que apareceu em 1690.

Ele próprio define no prefácio a intenção, o método e as grandes linhas da obra. Essa intenção é a de examinar a certeza e a extensão dos conhecimentos humanos, como outrossim os fundamentos e os graus de crença, de opinião e de assentimento que podemos ter com relação aos diversos assuntos que se apresentam ao nosso espírito. O método consiste em separar o conhecimento certo da opinião, em buscar a origem das ideias e mostrar de que modo elas se associam para formar o entendimento, examinando depois os “graus” desse “assentimento”, que vai desde a “opinião” — que outra coisa não é senão a — até a certeza científica. Deste modo poderemos evitar o cepticismo e conhecer o que nos importa realmente conhecer, ao mesmo tempo que banimos a vã curiosidade.

O centro da doutrina está, pois, na consideração das “ideias”, a que é consagrado o segundo livro. As “ideias” são os conhecimentos que o espírito adquire dos objetos. Há ideias simples, impressões imediatas que os sentidos criam no espírito ao revelar-lhe certas qualidades dos objetos: côr, cheiro, volume ou certas impressões de conjunto como as de prazer, de existência, de unidade. E há ideias complexas, que são combinações destas. As ideias complexas são de três espécies, conforme se refiram aos modos, às substâncias ou às relações. As ideias em si não podem ser verdadeiras ou falsas, são-no apenas pelo juízo que fazemos a seu respeito. As ideias primitivas se reduzem às de volume, extensão, número, percepção ou movimento. Todas elas se acham pois no ser ou no atual, e estão fora de consideração as ideias “inatas” ou naturalmente separadas.

Tal é o fundo de que o sistema vai haurir ao mesmo tempo a sua fraqueza e a sua facilidade: tudo se reduz ao fenômeno e à estrutura ou mecanismo do espírito. É possível, deste modo, construir ou reconstruir o mundo. A prova sobrevirá quando se passar desta espécie de física à metafísica, quando se passar a Deus. Mas Locke não se embaraça com isso. Tem a resposta pronta, e basta-lhe empregar mais uma vez o seu método: “As ideias complexas que temos de Deus e dos espíritos puros são compostas de ideias simples que recebemos da reflexão.” “Se verifico que conheço um pequeno número de coisas, sendo que algumas delas ou talvez todas de maneira imperfeita, posso formar ideia de um ser que conheça duas vezes mais e, procedendo assim ao infinito, tanto ao infinito da concepção como da perfeição, posso chegar à ideia do ser infinito.”

É, como vemos, a prova ontológica, percebendo-se também em que sentido se aperfeiçoou, como outrossim o que evidentemente lhe falta. Sempre lógica, tornou-se mais positiva e concreta; no entanto se esquece, como mostrará muito bem Kant, de sair do simples jogo da inteligência, e aqui o defeito reflete o da própria doutrina. Não explica como se pode passar da ideia à associação das ideias e do entendimento à razão, embora faça distinção entre ambos: um como a faculdade propriamente dita de pensar, a outra como determinação dos meios próprios para discernir a certeza. É que o espírito é necessário para explicar o espírito e, ainda que tudo deva passar pelos sentidos para chegar ao espírito, é preciso que ele esteja presente com os sentidos. Aí está por que Leibnitz acrescentou à fórmula de Locke, “Nada existe no espírito que não tenha estado antes nos sentidos” estas simples palavras que mudam tudo e com as quais Locke devia forçosamente concordar: “…a não ser o próprio espírito”.

Platão opunha a inteligência ao sensível e conciliava-os mediante a ideia de participação; Aristóteles e os seus discípulos imaginaram o intelectoagente e o intelectopossível; Descartes distinguiu a substância pensante e a substância extensa, sem conseguir restabelecer uma comunicação entre elas. Mas pelo menos o problema continuava em pé. Com Locke ele desaparece, pois aqui as ideias, percepções ou séries de percepções do espírito se ordenam por si mesmas e a questão do espírito é finalmente resolvida pela supressão do espírito.

Isto significa, em suma, que Locke ia terminar no mecanismo, o que se verá demasiadamente bem naqueles que derivam dele em linha reta e que o simplificam ainda mais. De qualquer modo, acabou de dar um impulso definitivo ao mundo moderno no sentido da defecção e dos progressos deste mundo. Estabeleceu com mais rigor uma filosofia fundada exclusivamente na razão e na experiência; crente sincero como Descartes, imaginava uma apologética fundada apenas na inteligência e não sonhou sequer com uma concepção do mundo que ultrapassasse essa dedução racional dos seus fenômenos e do seu encadeamento. Isto é o que o torna claro, sedutor, convincente, singularmente estreito, e explica a sua influência numa época tão favorável às suas teses e de que ele próprio era a ilustração, sobre os seus contemporâneos de todos os países e uma sociedade que se jactava de descobrir o homem desligando-o de toda religião e de toda metafísica. É ele assim, apesar da sua , o antepassado do laicismo e dos outros flagelos filosóficos modernos, desde o utilitarismo até o positivismo e o materialismo científico, e é bastante enumerar os seus descendentes para defini-lo na sua natureza — embora ele não tivesse querido ser o que de fato foi — e no seu alcance.

Mantém-se com demasiada evidência no tom espiritual da sua nação para não ter desempenhado ali, na ordem do pensamento, um papel capital. É a ele que se costuma ligar com justiça a escola associacionista, os Mill, os Spencer, os Bain, os Bailey e mesmo os Escoceses, cujo utilitarismo só podia provir destas mesmas fontes. Mas foi na França que encontrou a sua terra de eleição.

E não é para admirar que esta terra, doravante “filosófica”, isto é, racionalista e anticlerical, o acolhesse com transportes de entusiasmo. Foi, para os Enciclopedistas, uma descoberta maravilhosa e o objeto de uma exploração que avançou muito além das intenções desse homem honesto. Conhece-se o dito de Voltaire: “A filosofia de Locke está para a de Descartes e de Malebranche como a história está para o romance.” Rousseau seguiu-o por um outro caminho e num sentido ainda mais arbitrário e forçado. Lia Locke e até o copiava. Tirava dele ideias políticas sobre o “contrato social”, que arranjava a seu modo, e quando ouvia o seu autor falar em estado de natureza entendia estas palavras não no sentido lógico de um estado em que o homem se achasse “por natureza”, mas como uma espécie de acontecimento fiistórico.

Chegaremos a uma sistematização mais resoluta, mais pérfida mesmo, do pensamento de Locke, e a filósofos que daí tirarão consequências diante das quais ele teria recuado. Isto não nos deve impedir de fazer-lhe justiça, malgrado as deficiências e, podemos dizê-lo, o caráter elementar da sua construção. Nada metafísico num campo em que a metafísica é da capital importância, foi contudo psicólogo e fez avançar a psicologia. Se por um lado, ao atribuir o papel preponderante aos sentidos, não se apercebeu logo que a combinação das sensações não podia bastar para explicar o pensamento e deste modo preparou o sensualismo ainda mais ingênuo de um Condillac, também é verdade que, por outro lado, acabou de purgar o espírito de todo resquício de abstração abusiva e permitiu-lhe entregar-se com toda liberdade ao jogo perigoso em que o arriscava. Fenomenista, tende a eliminar a ideia de substância e esta eliminação será a grande prova a que vai sucumbir a filosofia ulterior. Mas graças a isso os fenômenos poderão ser considerados em toda a sua flexibilidade e suas possibilidades de arranjo e, embora conduzam a esse mecanismo final que é o impasse onde vai encalhar o sistema, permitirá pelo menos admirar a construção engenhosa da mecânica. Enfim, chegaremos por este caminho ao espírito e aos métodos científicos que têm sido os instrumentos da nossa perdição, mas que também nos fizeram progredir a passos rápidos na senda desta civilização tão exclusivamente material em que escolhemos viver.

Tal é o sentido e o alcance da doutrina de Locke. Exorbita a letra mas conserva ainda o espírito da física cartesiana; não se corrige com essa metafísica que impediu Descartes de ir até onde desejariam tê-lo levado. E, na verdade, estamos mais perto de Locke do que de Descartes — o que aliás não é nenhuma vantagem para nós. Esta doutrina participa, outrossim, da excelência do homem, pois Locke introduziu nela, além da sua inteligência, a sua moderação e a sua piedade: qualidades, estas últimas, que não encontraremos nos seus sucessores. Finalmente, se o problema do conhecimento não era resolvido, pelo menos continuava a apresentai-se em seus termos modernos e o gênio de Kant, menos de una século mais tarde, poderia reconsiderá-lo. [Truc]


O empirismo inglês se inicia com John Locke. A filosofia no momento em que vem ao mundo filosófico John Locke é ainda predominantemente cartesiana. Desde logo, um ponto de vista idealista é dominante já na filosofia; porém não somente o ponto de vista idealista em geral, mas, também, a concreta solução dada por Descartes ao problema metafísico predomina ainda na filosofia europeia. Assim o problema metafísico encontra nesta filosofia a solução substancialista de Descartes. Eu descubro “meu” próprio ser como ser presente: descubro entre minhas ideias a ideia de Deus, cuja essência envolve a existência e, mercê desta ideia de Deus como garantia, afirmo a existencialidade dos objetos de minhas ideias claras e distintas; por conseguinte, do espaço, movimento, número e suas modificações. Donde extrai Descartes uma metafísica das três substâncias: a substância pensante (a alma), a substância extensa (o corpo) e Deus, substância infinita criadora.

Essa triplicidade da substância domina absolutamente na filosofia quando chega Locke. O ponto de partida de Locke é, pois, o ponto da filosofia cartesiana. Mas Locke se propõe, desde logo, com uma clareza absoluta o problema metafísico como problema do conhecimento. Locke, com plena consciência da necessidade que existe radicalmente no idealismo de esclarecer o problema do conhecimento, inicia seu trabalho filosófico perguntando-se: qual é a essência, qual é a origem, qual é o alcance do conhecimento humano? Pois bem; o conhecimento se constitui por meio de ideias. Toma Locke a palavraideia” num sentido que nem antes nem depois dele teve na filosofia; toma-a como tradução em língua moderna da palavra latina cogitatio, usada por Descartes. Para Descartes, cogitatio é pensée, pensamento, e pensamento é todo fenômeno psíquico em geral. Uma sensação é uma cogitatio; uma proposição o é também; uma afirmação ou negação da vontade o é também. Em suma: qualquer vivência psíquica é chamada por Descartes cogitatio. [Morente]