A filosofia Grega não é uma ciência, uma teoria ou disciplina do conhecimento, tal como nós as entendemos hoje em dia. Ao contrário! Toda ciência, teoria ou disciplina do conhecimento é que são, de alguma maneira, dependentes da Filosofia Grega, quer se reconheçam ou não, quer se assumam ou não, como oriundas da Filosofia. A Filosofia Grega também não se constitui uma ideologia, concepção de vida ou visão de mundo. Mas não vale a inversão. Pois, uma ideologia, concepção de vida ou visão de mundo não pode prescindir de todo da Filosofia Grega. Foi o que, em 1949, no Congresso Nacional de Filosofia, reunido em Mendoza, na Argentina, reconheceu o próprio Bertrand Russell com as seguintes palavras:
“… incompromising empiricism is untenable!” / um empirismo sem compromisso é insustentável!”
Mas então o que é Filosofia Grega, se não for ciência, teoria ou disciplina do conhecimento, nem ideologia, concepção de vida ou visão de mundo? – Antes de responder, pensemos um pouco o que nos leva a perguntar assim, isto é, o que nos torna esta pergunta não somente possível como, sobretudo, imperiosa!
Esta pergunta supõe aceitas sem discussão muitas coisas. Assim supõe que toda Filosofia, portanto também a Filosofia Grega, seja ou, ao menos, pretenda ser um exercício de conhecimento. Supõe, do mesmo modo, que, além do conhecimento, já não sobre nada mais para a Filosofia ser. Supõe, igualmente, que tudo que é não possa deixar de ser alguma coisa, um quê, por isso se pergunta o que é. Supõe, outrossim, que toda pretensão de conhecimento termine sempre ou com a produção de um conhecimento objetivo e então é ciência, ou, com a produção de uma ilusão transcendental ou empírica e então é ideologia. Supõe, por fim, que toda época, a época dos gregos também, tenha sua concepção de vida e visão de mundo.
Como se vê, não são poucas as suposições que sustentam aquela pergunta! Mas e se todas estas suposições forem e estiverem a serviço de dicta dura, isto é, da ditadura da razão, seu raciocínio e sua racionalidade, muito bons, sem dúvida, para conhecer objetos, mas imprestáveis para pensar a realidade nas realizações do pensamento grego? Neste caso, com que cara nós ficaremos, ao perguntar: “Mas, então, que é a Filosofia Grega se não for nem conhecimento nem ideologia, nem concepção de vida nem visão de mundo?” Será que ainda ficaremos com uma cara quando só nos restar a carranca intransigente da razão e sua ditadura?
Agora que sabemos das suposições e limites da pergunta, poderemos tentar respondê-la.
A Filosofia Grega é uma experiência de Pensamento. Mas não é a única experiência grega de pensamento. Outra experiência grega de Pensamento é o Mito e a Mística.
Uma outra, são os deuses e o extraordinário. Ainda uma outra é a Poesia e a Arte. Ainda outra é a polis e a politeia. A última, por ser no fundo a primeira experiência grega de Pensamento, é a vida e a morte, eros e tanatos. [Carneiro Leão]
Segundo a tradição, o criador do termo “filo-sofia” foi Pitágoras, o que, embora não sendo historicamente seguro, no entanto é verossímil. O termo certamente foi cunhado por um espírito religioso, que pressupunha só ser possível aos deuses uma sofia (“sabedoria”), ou seja, uma posse certa e total do verdadeiro, uma contínua aproximação ao verdadeiro, um amor ao saber nunca saciado totalmente, de onde, justamente, o nome “filo-sofia”, ou seja, “amor pela sabedoria”.
Mas, substancialmente, o que entendiam os gregos por essa amada e buscada “sabedoria”?
Desde o seu nascimento, a filosofia apresentou de modo bem claro três conotações, respectivamente relativas a 1) o seu conteúdo, 2) o seu método e 3) o seu objetivo.
1) No que se refere ao conteúdo, a filosofia pretende explicar a totalidade das coisas, ou seja, toda a realidade, sem exclusão de partes ou momentos dela. Assim, a filosofia distingue-se das ciências particulares, que assim se chamam exatamente porque se limitam a explicar partes ou setores da realidade, grupos de coisas ou de fenômenos. E a pergunta daquele que foi e é considerado como o primeiro dos filósofos — “Qual é o princípio de todas as coisas?” —já mostra a perfeita consciência desse ponto. Portanto, a filosofia se propõe como objeto a totalidade da realidade e do ser. E, como veremos, alcança-se a totalidade da realidade e do ser precisamente descobrindo qual é o primeiro “princípio”, isto é, o primeiro “por que” das coisas.
2) No que se refere ao método, a filosofia visa ser “explicação puramente racional daquela totalidade” que tem por objeto. O que vale em filosofia é o argumento da razão, a motivação lógica, o logos. Não basta à filosofia constatar, determinar dados de fato ou reunir experiências: ela deve ir além do fato e além das experiências, para encontrar a causa ou as causas precisamente através da razão.
É justamente esse caráter que confere “cientificidade” à filosofia. Pode-se dizer que esse caráter também é comum às outras ciências, que, enquanto tais, nunca são uma mera constatação empírica, mas também são pesquisa de causas e razões. A diferença, porém, está no fato de que, enquanto as ciências particulares são pesquisa racional de realidades e setores particulares, a filosofia, como dissemos, é pesquisa racional de toda a realidade (do princípio ou dos princípios de toda a realidade). Com isso, fica esclarecida a diferença entre a filosofia, arte e religião também: a grande arte e as grandes religiões também visam captar o sentido da totalidade do real, mas o fazem, respectivamente, uma com o mito e a. fantasia, outra com a crença e a fé (como dissemos acima), ao passo que a filosofia procura a explicação da totalidade do real precisamente ao nível do logos.
3) Por último, o objetivo ou fim da filosofia está no puro desejo de conhecer e contemplar a verdade. Em suma, a filosofia grega é amor desinteressado pela verdade. Como escreve Aristóteles, no filosofar, os homens “buscaram o conhecer a fim de saber e não para conseguir alguma utilidade prática”. Com efeito, a filosofia só nasceu depois que os homens resolveram os problemas fundamentais da subsistência, libertando-se das mais urgentes necessidades materiais. E conclui Aristóteles: “Portanto, é evidente que nós não buscamos a filosofia por nenhuma vantagem estranha a ela. Aliás, é evidente que, como consideramos homem livre aquele que é fim em si mesmo, sem estar submetido a outros, da mesma forma, entre todas as outras ciências, só a esta consideramos livre, pois só ela é fim em si mesma.” E é fim em si mesma porque tem por objetivo a verdade, procurada, contemplada e desfrutada como tal. Então, pode-se compreender a afirmação de Aristóteles: “Todas as outras ciências podem ser mais necessárias do que esta, mas nenhuma será superior.” Uma afirmação que foi adotada por todo o helenismo.
Impõe-se, porém, uma reflexão: a “contemplação” peculiar à filosofia grega não é um otium vazio. Embora não se submetendo a objetivos utilitaristas, ela possui uma relevância moral e também política de primeira ordem. Com efeito, é evidente que, ao se contemplar o todo, mudam necessariamente todas as perspectivas usuais, muda a visão do significado da vida do homem e se impõe uma nova hierarquia de valores. Em resumo, a verdade contemplada infunde uma enorme energia moral. E, como veremos, com base precisamente nessa energia moral foi que Platão quis construir o seu Estado ideal. Mas só mais adiante é que poderemos desenvolver e esclarecer adequadamente esses conceitos.
Entrementes, ficou evidente a absoluta originalidade dessa criação grega. Os povos orientais também tiveram uma “sabedoria” que tentava interpretar o sentido de todas as coisas (o sentido do todo) sem se submeter a objetivos pragmáticos. Mas tal sabedoria era entremeada de representações fantásticas e míticas, o que a levava para a esfera da arte, da poesia ou da religião. Em conclusão, a grande descoberta da “filo-sofia” grega foi a de ter tentado essa aproximação ao todo fazendo uso somente da razão (do logos) e do método racional. Uma descoberta que condicionou estruturalmente, de modo irreversível, todo o Ocidente. [Reale]